Por Neto Lucon
No último ano, a chef de cozinha cis Paola Carosella, conhecida pelo reality show Master Chef (Band) promoveu um curso de auxiliar de cozinha para pessoas trans e travestis em São Paulo. Dentre as suas alunas estava Alessandra Martinelli, uma das profissionais que se destacaram no curso e logo passaram a ver na gastronomia uma possibilidade de emprego e inclusão.
Naquele período, Alessandra era uma das moradoras da Casa Florescer – espaço que acolhe travestis e mulheres transexuais sujeitas à vulnerabilidade social em São Paulo – e carregava várias histórias de superação, preconceito e reclusão. Ela foi presa durante 10 anos e, em liberdade, encontrava-se desabrigada, sem alternativas e apoio.
Foi por meio da Florescer que ela encontrou uma nova possibilidade de sonhar e por meio do curso uma possibilidade de emprego. “Foi um talento que descobri no curso, nunca nem imaginava (que mandasse bem na cozinha). Estou gostando muito, de verdade”, declara. Dentre os pratos que tem feito muito sucesso, ela destaca a feijoada que preparou ao lado de outras duas auxiliares de cozinha na Casa Florescer. “A feijoada foi muito elogiada e eu fiquei muito feliz”.
Ao todo foram nove disciplinas sobre aptidões básicas do trabalho em uma cozinha de restaurante. Alessandra conta que Paola é muito séria, correta e humana e que passou minuciosamente o conteúdo para as alunas. Nas redes sociais, foi a vez da professora comemorar o trabalho: “E quem mais aprendeu de todas e todos fui eu. Obrigada”. Para a auxiliar de cozinha, esta é a oportunidade de se recolocar no mercado formal de trabalho.
“O curso foi muito interessante e importante para nós, pois estamos tendo algumas oportunidades de emprego. Nesse fim de semana vou ter um trabalho e aqui na casa eu fiz a festa beneficente, que o Beto (Silva) e a equipe dele confiaram em mim para ficar dentro da cozinha e mostrar meu serviço. Fiquei até triste com o fim do curso. Agora vamos correndo atrás”, contou.
A entrevista com Alessandra foi realizada no final de 2017. Hoje, dia 20 de abril de 2018, ela trilhou um caminho diferente. Segundo o coordenador da Casa Florescer, Alberto Silva, Alessandra começou a trabalhar e está saindo da Casa Florescer para ir para locar a sua própria moradia. Parabéns, Alessandra! E a todas as pessoas envolvidas nessa vitória! Essas iniciativas transformam vidas!
Confira a entrevista na íntegra:
– Como foi que você chegou até a Casa Florescer?
Eu vim de um presídio para cá. Fiquei presa durante 10 anos e quando eu saí de liberdade, estava desamparada. Fiquei um tempo na rua, procurei um abrigo, mas não fui bem recebida. Tanto que peguei uma pernoite em outro abrigo e a assistente social me chamou e disse que não poderia me dar a vaga. Ela falou que não era pelo fato de eu desrespeitar alguém dentro da casa, nem de ter feito algo de errado, mas que estava tendo reclamação dos conviventes por eu ser travesti.
– Era um espaço masculino? Sendo travesti, por que procurou esses albergues para homens?
Como fiquei muito tempo privada da minha liberdade (em um presídio masculino), fiquei desacreditada. Fiquei perdida, não sabia para onde ir. Fui praticamente jogada na rua, dormindo dentro de um parque na Mooca. Fiquei doente, porque tenho problema de HIV há 20 anos. Então, um agente de saúde veio falar comigo e disse que eu deveria procurar um lugar para ficar, pois não poderia permanecer naquela situação. Saí andando, sem eira e nem beira, e encontrei uma amiga travesti que estava indo para a Cracolândia. Ela me chamou para fumar pedra e eu não quis. Falei que há 10 anos não colocava aquilo na boca, que não tenho vontade e que tenho outro objetivo de vida. Justamente nessa época, o emergencial na frente da Casa Florescer estava abrindo pernoite por causa do frio. Eles disseram que me dariam uma pernoite, mas que eu não poderia ficar. Pensava: Meu Deus, para onde eu vou?
– E para onde você foi?
Quando estava saindo, vi: “Casa das mulheres transexuais”. E pensei: Como assim? E nisso eu vi que tinha um monte de menina trans aqui na frente. Falei: “É ali que eu tenho que estar, não é em albergue masculino”. Fiquei na rua naquela noite e na segunda foi ao Creas, falei tudo o que estava vivendo, que precisava de um lugar e que queria ter uma oportunidade de vida para mostrar para a sociedade que independentemente dos meus erros, eu posso ser uma pessoa diferente. E a assistente social ligou para a Casa Florescer e eu fui muito bem recebida. Tive muito apoio.
– Você acha que o fato de ter tido problema com a justiça prejudicou de ter algum tipo de amparo antes de conhecer a Florescer?
Correto, por isso e por ser travesti também. A sociedade não aceita as travestis e o fato de já termos tido problema com a justiça piora. Eles acham que a gente não tem capacidade de mudar. E o ser humano tem capacidade de mudar, sim. Basta ela querer. Mas o preconceito é difícil, inclusive no meio do trabalho.
Você acha que a sociedade, por não dar apoio, acaba incentivando que cometa novamente outros erros?
De novo não. Na época que aconteceu isso comigo, eu era menor de idade. Eu morava em casa de cafetina. Daí as pessoas falam: “A travesti vive na esquina, travesti se prostitui, travesti usa droga, travesti rouba”. Essa foi a minha vida, mas no passado. Hoje em dia eu falo que de novo não, porque eu luto por novas oportunidades na minha vida. E eu tenho tido muito apoio e estou dando muito valor. Eu quero mostrar para a sociedade que apesar de ter um par de peito, ter um silicone na bunda, de ter um passado triste, eu sou um ser humano que posso mudar. Eu acredito na minha mudança. Eu quero que a sociedade me aceite do jeito que eu sou. O meu passado é meu passado, eu não devo mais isso. E estou lutando pela minha vida.
– O que você tira dessa experiência como aprendizado?
Hoje eu aprendi que para ser feliz não preciso mexer em nada de ninguém, não preciso viver em uma esquina, fumando um baseado de maconha, cheirando pó, porque a única coisa que eu preciso é coragem e força de coragem para lutar.
– As pessoas falam que é muito difícil para a população de travestis e transexuais estarem em presídios masculinos, justamente por não terem a sua identidade de gênero respeitada. Como foi para você?
É tudo verdade. É muito difícil para as meninas trans que estão dentro de presídio masculina. É uma situação muito constrangedora, eles não têm respeito, eles veem a gente como objetos de uso para guardar a droga dentro do nosso corpo, como escrava para lavar roupa para eles. Muitas vezes temos que nos sujeitar a ter relação sexual contra a nossa vontade. Quando tem uma rebelião, eles querem pintar o sete, achando que a gente é bicho. Muitas meninas que estão ali não é porque erraram. É porque são travestis. Outras erraram, como eu. Eu errei, mas já estava pagando pelos meus erros. Eu sofri muitas coisas dentro do presídio que foram constrangedoras, violentas e desnecessárias, que muitas meninas continuam sofrendo ainda hoje.
– O que você poderia falar para as pessoas que julgam e acusam pessoas que estão em situação de vulnerabilidade?
Que procurem ver a gente com outro olhar. Às vezes a travesti não está na esquina porque ela gosta, porque ela quer, é pela falta de oportunidade e pelas portas sempre estarem fechadas. E isso ocorre porque a sociedade não enxerga a travesti como ser humano, mas como uma marginal, como uma drogada. Então, ela deve saber que independente da nossa opção sexual a gente pode ser maravilhosa. A gente pode ter estudo, trabalhar, pode ter a nossa família. Se a sociedade nos visse de outra forma, muitas coisas que acontecem com a travesti não aconteceriam.
– Dentro da Casa Florescer você foi verdadeiramente acolhida?
Aqui na casa eu encontrei pessoas amigas, que me apoiaram, que me apoiam até hoje. Pessoas que eu amo muito mais que qualquer pessoa da minha família. Porque minha família em si virou as costas pra mim quando assumi minha opção sexual. Eu tive que ir para o mundo, eu tive que ir para casa de uma cafetina, eu tive que ir me prostituir, eu fui presa na primeira vez sem ter feito nada de errado, porque eu estava no lugar errado, com as pessoas erradas, porque eu era de menor e a cafetina entrou na minha mente e disse: “Segura o B.O. para mim que depois eu vou te ajudar”. E depois ela me abandonou dentro do presídio. Isso foi doloroso. Eu peguei HIV dentro da cadeira. Eu cheguei aqui uma pessoa triste, sem vida, sem motivo para sorrir, sem motivo para viver. Eu não tinha documento, não tinha roupa, não tinha amigos. E aqui, hoje em dia, graças a Deus, eu consegui ter meus documentos, me ajudaram a limpar o meu nome com a justiça.
– Como foi o curso com a Paola Carosella?
Está sendo muito interessante e ao mesmo tempo está sendo muito importante porque através desse curso estamos tendo algumas oportunidade de emprego. Vou ter um trabalho nesse fim de semana, por exemplo. Aqui na casa eu fiz a festa beneficente que o Beto e a equipe dele confiaram em mim para ficar dentro da cozinha e mostrar o meu serviço.
– Você sabia que tinha a habilidade para cozinhar?
Foi algo que descobri no curso da Paola, nunca nem imaginava. Eu estou gostando muito, de verdade. Estou até triste com o fim do curso. Depois desse curso temos que correr atrás (da recolocação no mercado de trabalho).
– Tem algum prato que tem feito sucesso?
Aqui na casa, eu fiz uma feijoada com duas conviventes e foi muito elogiada. Eu não esperava e fiquei muito feliz.
– Fiquei curioso para provar sua feijoada!
Estão convidados!
– Alessandra, tem algo que você gostaria de falar que é muito importante?
É muito importante dizer que esta casa, Florescer, nunca termine. Porque aqui a gente tem muita ajuda. Eu queria pedir que as pessoas procurassem ajudar a casa Florescer, porque é uma casa que precisa de apoio. Aqui tem agente de saúde, tem menina que trabalha em outros abrigos, meninas que estudam, e tem muitas que correm atrás até hoje e muitas vezes escutam um não. E a casa tem a suas necessidades, se tivesse mais ajuda, mais apoio, a gente conseguiria um lugar até rápido de sair daqui. Aqui é um lugar que muitas pessoas entram e saem sempre.
• A entrevista com Alessandra foi realizada no final de 2017. Hoje, dia 20 de abril de 2018, ela trilhou um caminho diferente. Segundo o coordenador da Casa Florescer, Alberto Silva, Alessandra está indo para a sua própria moradia, começou a trabalhar e faz locação do imóvel. Parabéns, Alessandra! E a todas as pessoas envolvidas nessa luta!
Assista a entrevista: