“Somos resistência no país que mais nos usa e mais nos mata”, diz artista trans Buba Kore admin Fevereiro 12, 2019

“Somos resistência no país que mais nos usa e mais nos mata”, diz artista trans Buba Kore

No Dia Nacional da Visibilidade Trans, o NLUCON traz uma entrevista exclusiva com Buba Kore, de 23 anos. Trata-se de uma artista trans da nova geração que, atravessando diversos segmentos artísticos, vem mostrando talento, beleza e também a consciência e ativismo ao provocar questões relacionadas à transgeneridade e negritude.

“Minha luta é além do respeito com o meu corpo. Ela vai também para a minha cor e meu cabelo crespo”, declara a artista ao NLUCON. E tais características estão diretamente relacionadas com o trabalho, oportunidades e desafios enquanto DJ, modelo, produtora de eventos, ativista e transfeminista.

Buba nasceu em São Paulo e revela que desde os 13 anos e se reconhece como mulher trans ou travesti (para ela, não há diferenças nas duas identidades, além do estima que a palavra travesti sofre). Conta que nasceu em um lar tranquilo, mas que nunca foi apoiada 100%. Recebeu muitos nãos, portas fechadas, transfobias, racismo, mas teve garra para seguir e ocupar seu espaço de fala.

No fim de 2018, a artista enfrentou uma das transfobias de maior repercussão nas redes sociais. Foi encaminhada a uma fila de homens, mesmo estando em uma festa LGBT. Ela filmou, denunciou e expôs as contradições da noite LGBT em relação ao contínuo desrespeito às pessoas trans. Posteriormente, fortaleceu o trabalho enquanto DJ e produtora da festa FEJÃO, em São Paulo. Nela ensinou como se faz e, sim, há presença, respeito e acolhimento verdadeiro às pessoas trans.

Abaixo, confira um bate-papo sincero, franco e necessário:

– NLUCON: Hoje é o Dia da Visibilidade Trans. Em termos de visibilidade, o que ainda não é visto sobre a comunidade trans e que precisa ser visibilizado?

As dificuldades que uma pessoa trans enfrenta profissionalmente, na família e na questão psicológica. Falta compreensão. Vivemos no pais que mais nos usa e mais nos mata. Usa nossa imagem para falar de igualdade, mas na prática somos constantemente humilhadas. Vistas como chacota da sociedade, servindo apenas como prazer e “entretenimento”. Precisamos de educação, oportunidade… E as pessoas precisam de informação para lidar com a diversidade que percorre a sigla LGBTQI+. E o T em especial, porque somos vítimas todos os dias.

– De qual maneira esses estigmas e transfobias que você apontou refletem em sua vida cotidiana?

Eu tenho síndrome do pânico, porque fui vítima de violência. Então meu psicológico é abalado. Um trauma controlado atualmente, mas irreversível. Sinto medo de andar sozinha e evito. Por mais que já ouvi muitas vezes falaram da minha passabilidade, não me sinto segura em nenhum lugar. Falta respeito com os nossos corpos e com o uso do pronome. Vejo uma falta de preparo constante em diversos estabelecimentos comerciais. Isso também afeta diretamente nossa condição social e emocional. Fila de médico, banco, balada, restaurante e, mesmo com passabilidade, se percebem uma voz mais grossa, jeito ou alguma característica atribuída às pessoas trans, as pessoas cis se sentem no direito de te atacar indiretamente/ diretamente sem nenhum tipo de educação.

–  Ser uma mulher trans negra te traz experiências diferentes daquelas vivenciadas pelas pessoas trans brancas?

Várias! O que acontece muito é: as pessoas falam que em tal lugar tem pessoa trans trabalhando e quando vamos ver, é branca. Aí rola aquela comparação… “Nathalia não faz programa, é trans e trabalha na loja de departamento X”. Porém, Nathalia é loira, branca, olho azul e panicat. Nossa realidade de trans negra é diferente, porque somos automaticamente marginalizadas e sempre precisamos mostrar além do que podemos pra conseguir um espaço. Eu posso dizer isso por experiência própria, meus trabalhos como modelo foram substituídos por modelos trans brancas e isso é um racismo velado, sim! Existem diversos tipos de transexuais e todas merecem respeito e oportunidade… Isso acontece também com trans sem passabilidade. Muitas marcas pagam de apoiadoras da causa, se esquecendo que tem a trans periférica, trans negra, trans deficiente…

– Observo a discussão sobre a solidão da mulher negra. E recentemente vi uma postagem sua em que relatava que aos 13 anos se relacionou com um homem mais velho e que viveu um relacionamento abusivo.  Hoje, como é a sua vida amorosa enquanto travesti negra?

Sim, me envolvi com esse homem mais velho, meu primeiro relacionamento. No começo mil rosas. Mas, infelizmente se tornou um trauma gigantesco. Ele falava coisas horríveis do tipo: OLHA PRA VOCÊ, NINGUÉM NUNCA VAI TE AMAR. VOCÊ DEVERIA AGRADECER POR ME TER. com o tempo descobri traição e então veio a agressão. Por ser meu primeiro relacionamento e eu estar naquela fase de aceitação, de me conhecer e entender, eu me condicionei nesse relacionamento. Realmente cheguei a acreditar que ele era o melhor pra mim e a única coisa que eu tinha. Me dei conta que não quando rolou agressão.

A solidão da mulher trans é real, não posso falar muito sobre isso porque realmente não tive uma vivência grande sobre isso. Sempre me relacionei e estou num relacionamento agora inclusive. Mas, sei que é real por acompanhar outras conhecidas em seus relacionamentos. Muitas se sentem usados por se relacionar em aplicativo e o parceiro não demonstrar interesse de outros encontros. Conheço uma pessoa em especial, que é trans gorda e ela me relatou que nunca namorou e sente falta disso, acredita também nunca vai namorar…

Acho que o problema principal é a fetichização dos nossos corpos. Querem apenas para prazer e jamais assumir um relacionamento, levar para almoçar fora, cinema, fazer compras, Casar… ser uma mulher negra já gera essa fetichização, ser uma mulher negra e trans, é praticamente o dobro disso

– Acha possível ter uma militância interseccional, que trabalha questões envolvendo raça, gênero, identidade de gênero, pessoas indígenas…?

Eu acho necessário pelo simples motivo da existência. Existem pessoas transexuais em vários lugares, de vários corpos, estilos, crenças… E precisamos falar sobre isso, precisamos falar da dificuldade e do privilégio que cerca pessoas do nosso meio também. Um outro dia, eu estava lendo sobre transexuais indígenas e muita gente não se dá conta disso. Das dificuldades que essas pessoas encontram também. Assim como uma transexual periférica. Minha luta também consiste em dar força os meus, apoiando e dando suporte para as manas – principalmente as minas pretas.

– Você trabalha como DJ e produtora de festas. Como a cena das casas nortunas LGBT recebe uma profissional trans e negra?

Bom, eu me afastei um pouco das casas noturnas. Eu não conseguia mais me sentir à vontade, por conta da falta de informação, falta de respeito e assédio que sempre rolava. Cansa explicar todo final de semana que você não é um personagem, uma drag queen. Infelizmente o público G faz isso constantemente, além disso se acham no direito de tocar em nossos corpos: “é seu peito mesmo?”, “você tem buceta?”. Hoje sou produtora de festa (Festa FEJÃO), além de DJ. Geralmente toco em lugares que sei que não vou ser desrespeitada. Faço casamentos, festas particulares… Nos lugares que sei que não vou sofrer nenhum tipo de opressão frequento e tem ótimos profissionais. Mas ainda sinto muito descaso nas casas noturnas. Quando não é com o segurança na portaria, é com alguém da equipe, do bar, da chapelaria ou muitas vezes o próprio público. Afinal, não é segredo pra ninguém que no próprio meio lgbtq+ existe misoginia, racismo e transfobia, e essa realidade precisa mudar!

– Recentemente, você teve um problema em uma festa dita LGBT ao ser direcionada para a revista masculina. Como foi?

Exatamente! A Glow In The Dark que aconteceu Nos Trilhos, é o tipo de festa que se diz inclusiva  (o famoso pink money). Sem treinamento nenhum com os  funcionários, sendo que eles dizem treinar. Na fila para entrar na festa tem o lado, feminino e masculino. Tem revista. Obviamente eu estava no lado feminino com as minhas amigas. Quando chegou a minha vez, a segurança se recusou a me revistar, alegando que era ordens que ela recebia do dono do espaço e da produção da festa. Mandou eu ir para o lado MASCULINO, para ser revistada por um segurança MASCULINO. E eu recusei.

Questionei qual era o motivo e a resposta dela, foi bem desagradável: PRA MIM VOCÊ É HOMEM. Não foi a primeira vez que isso aconteceu lá, com o meu relato no facebook apareceu outras vítimas. Tinha rapazes da fila ao lado (fila masculina), estavam rindo de mim e da situação constrangedora que estava acontecendo. A fila feminina parou de andar, simplesmente porque a segurança se recusou a me revistar, chamaram outra segurança para revistar as outras meninas cis que estavam na fila e eu continuava barrada.

Ela me olhava com nojo e com olhar de reprovação, disse que ia chamar um responsável maior para lidar com a situação, PORQUE ELA NÃO PODERIA ME REVISTAR, PORQUE “SOU HOMEM” e era para o segurança masculino me revistar. Ainda fico indignada quando me lembro, muitos e muitos eventos fazem isso: falam de igualdade e fazem exatamente o contrário. Fazem isso para vender ingresso, desrespeitando nossa existência!

– Você chegou a fazer alguma coisa sobre essa situação? Após a exposição do caso, com vídeo e tudo, eles entraram em contato com você?

Primeiramente me ofereceram vip para qualquer festa que eu quisesse ir. Sim, tiverem a cara de pau de fazer isso. Depois entraram em contato, com aquelas desculpas esfarrapadas. Bem pé de chinelo, alegando que vão melhorar o treinamento, porém, quando eu citei as outras vítimas e todos os casos que ocorreram lá, eles sumiram. Minha advogada tentou entrar em contato com eles, mas está sendo e foi ignorada. Me falaram até que eles estavam com medo de falar sobre o caso em público por conta do show do MC Kevin que teve lá recentemente, então eles ocultaram o caso, sem nota pública e trataram como um tanto faz. Infelizmente uma realidade, travestis e transexuais são vistas como tanto faz por essas pessoas que só querem ganhar dinheiro em nossas costas.

– Aliás, o que fazer diante de situações de transfobia como essa?

Aconselho todas as pessoas trans evitarem frequentar esses lugares sozinhas. Eu só tive força pra filmar o ocorrido porque não estava sozinha, a humilhação foi grande e devastadora. Filmem, gritem, não tenham medo. Não aceitem esse tipo de constrangimento!

– Quando você produz festas ou toca como DJ, você procura prestigiar artistas trans e travestis? O que indicaria para as pessoas procurarem?

Com toda certeza, na Festa FEJÃO, onde além de produtora sou apresentadora, nossa primeira edição foi no dia 29 de Janeiro, dia da visibilidade trans. Ser uma voz ativa nesse meio é interagir diretamente com diversas pessoas dentro da comunidade. Danna Lisboa é uma cantora maravilhosa e frequentadora da minha festa. Outros artistas trans frequentam e eu faço questão de abrir espaço para essas pessoas. Lojas independentes como a transludica, artistas, drags, atores e até psicóloga trans nós temos como frequentadores.

– Para finalizar, gostaria de propor uma narrativa diferente. O que tem de melhor em ser uma mulher trans / travesti negra?

Olha, o fato de acordar viva e dar essa entrevista, ao meu ver já me torna uma guerreira e um símbolo de resistência. Eu sou uma sobrevivente e tenho muito orgulho disso. Uso minha força para incentivar outras manas a lutar e isso me traz felicidade e gratidão. Ser uma travesti negra e ser produtora de uma festa que propõe diversidade e União, ser modelo (mesmo que atualmente com poucos trabalhos) mas mostrando a beleza da mulher negra transexual, é uma honra. São conquistas que tenho e me orgulho disso. Então pra mim, ser uma mulher travesti é orgulho, ser uma mulher transexual negra é resistência. Poder contar a minha história, falar sobre mim, receber o carinho das pessoas que me admiram e me lembrar de tudo que já passei… Não tenho palavras.