A cozinheira e confeiteira Gisely dos Santos, mulher trans de 54 anos, ainda usa máscara e caminha com a ajuda de um apoio. Faz 31 dias que ela realizou a cirurgia de transplante de medula óssea, sendo a primeira mulher trans a passar pelo procedimento no Hospital das Clínicas da USP, em Ribeirão Preto.
Atualmente ela está recebendo os cuidados pós-transplante no GATMO – Grupo de apoio a transplantados de medula óssea, dentro da USP – e declara que está sendo muito bem cuidada pela enfermeira, secretárias e diretora. A alta deve ocorrer dentro de 100 dias e ela se diz confiante. “Estou feliz que vou poder viver mais alguns bons anos”, vibra.
Em 16 anos de tratamento contra a leucemia, é a primeira vez que uma mulher trans ou travesti realiza o tratamento no Hospital das Clínicas, em Ribeirão. Gisely observa este dado com preocupação, uma vez que certamente não é a primeira vez que uma mulher trans ou travesti brasileira precisa do transplante.
“Talvez não busquem o atendimento com medo de sofrer preconceito. Mas eu quero dizer que aqui você vai ser bem atendida e acolhida. Todos, tanto do Hospital das Clínicas quanto do Gatmo, me chamam de Gisely, respeitam como mulher, com o meu nome social e a minha identidade de gênero. Me trataram como uma princesa. Divulga isso para que mais gente que precise procure ajuda”, pede ela.
A DESCOBERTA
A cozinheira conta ao NLUCON que a descoberta da leucemia mieloide crônica ocorreu em 2011, quando ela teve uma anemia muito forte e que mesmo com tratamento não sarava. “Essa anemia ia e voltava, então eu fui consultar com o infectologista, pois sou soropositiva, e ele fez o exame. Deu a thalassemia. Curiosamente os meus avós e a minha mãe também tiveram e eu herdei”.
Em 2012, já em tratamento no HC, a saúde de Gisely estava muito delicada, os remédios não faziam mais efeitos e havia várias feridas pelo corpo. Segundo a cozinheira, os médicos davam 10% de chance de sobrevivência e de 3 meses a um ano de vida. “Eu fiquei preocupada, pois não sabia o que aconteceria. Com 54 anos e ter que ir embora, sem aproveitar mais um pouco, eu não quero. O meu negócio é viver”.
Foi então que as irmãs de Gisely foram convocadas para um teste de compatibilidade. “As minhas irmãs toparam, porque me amam de paixão. Somos uma família muito unida e nos apoiamos muito. Mas ainda assim eu fiquei com medo, porque é raro as pessoas serem compatíveis. Às vezes nem pai e mãe são compatíveis”, diz.
IRMÃ DOOU
Das três irmãs biológicas – ela também tem uma irmã adotiva, que não realizou o teste – uma era compatível 100%: Rosirene. Ao saber do resultado, a irmã disse: “Eu sou uma privilegiada. É claro que vou doar a medula para você, sem dúvida nenhuma”. Gisely conta que pulou de alegria quando soube do resultado.
“Foi uma benção de Deus, uma dádiva que eu recebi em minha vida. Eu falo e tenho vontade de chorar”, se emociona.
A cirurgia de Rosirene ocorreu pela manhã e ela retirou 1 litro e 200ml de medula. Já a de Gisely ocorreu às 10h da noite, demorando 12 horas para o transplante total da medula. “Essa medula foi recebida com muito amor, com muita oração, com muito carinho. Foi recebida com muito amor”.
Gisely diz que a família respeita a sua identidade de gênero e que os únicos estranhamentos ocorreram no início da transição. “Com 17 eu já tinha peito, já tinha bunda, hormônio. No começo toda família estranha e diz: ‘Você nasceu homem, tem que ser homem”. Mas com o passar do tempo, eles viram que era aquilo mesmo. Foram aceitando, aceitando e hoje temos uma harmonia muito bonita. A união é muito grande”.
RECUPERAÇÃO
Muito positiva, a cozinheira conta que o pós-transplante está sendo “maravilhoso”, recebendo alimentação e medicamento nos horários certos e que nem febre está tendo. Ela também conta que foi a alegria do hospital e do Grupo de apoio.
“As enfermeiras dizem nunca mais esse lugar vai ser o mesmo depois de mim. Fervi muito lá dentro, você sabe como é trans, né? Eu sou uma pessoa muito pra frente, acredito muito em Deus, nos meus mentores espirituais”, entrega.
No Gatmo, ela conseguiu uma enfermeira por meio da Justiça. “Pedi apoio para a cidade de Monte Alto, São Paulo, para alguém ficar comigo, mas a prefeitura rejeitou, mesmo eu tendo trabalhado 30 anos lá dentro. Entrei na Justiça de pequenas causas e o juiz assinou na hora. A Prefeitura agora paga a enfermeira”, declarou.
Ela lembra que trabalhou durante 30 anos na cozinha e que foi por meio da profissão que conseguiu driblar a transfobia e conquistar sua dignidade. “Prestei concurso e passei em primeiro lugar. E como é concurso público, eles não tiveram como desfazer. Trabalhei numa cozinha piloto, onde a gente cozinhava e eles levavam a merenda para as escolas. Entrava quatro da manhã e saía a 1h da tarde. Já casei três vezes. Hoje eu sou sozinha e recebo uma aposentadoria que não chega a mil reais”.
“Mas voltando a falar sobre preconceito…”, continua. “Qual mona não passou? Já apanhei na rua, já tive revolver na cara, faca no peito. Foi babado, mas eu sobrevivi e continuo sobrevivendo”.
GRATIDÃO
Tem alguma coisa que você quer fazer após a alta?, pergunto. Gisely responde rápido: “Passear, viajar muito e também ajudar essa casa”. Sendo bem recebida, ela destaca que o Gatmo tem 25 anos de existência, é fundamental na recuperação de pessoas que recém-transplantados e que se mantém por meio de doações.
“Estou sentindo que preciso ajudar a casa. É uma casa religiosa, com pessoas religiosas, mas que diferente do que costumamos a ver, não demonstram preconceito. Elas me respeitam como mulher e me aceitaram de coração e braços abertos. É uma casa realmente importante”, diz.
A USP fornece carne, luz e o espaço. Já a água, a alimentação – que inclui café da manhã, almoço, café da tarde e lanche da noite – e outros serviços são feito por meio de doações.
A rotatividade de pacientes no Gatmo é grande, uma vez os recém-transplantados permanecem em dois dos espaços, determinados pelo tempo do transplante, e também podem voltar a frequentar caso precisem de retorno. Gisely, por exemplo, terá alta depois de 100 dias, mas pode voltar ao local caso tenha alguma complicação e precise de internação.
“Essa casa serve para o resto da vida. É por isso que estou dando essa entrevista para você: para que consigamos ajuda para a casa. Quem sabe um poderoso LGBT não possa fazer uma doação? E para incentivar que outros LGBT que tem a leucemia procurem ajuda”, milita Gisely. Que ela tenha uma recuperação rápida e muitos e muitos anos de vida com saúde!
Veja fotos do espaço:
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PARA AJUDAR O GATMO – Grupo de apoio a transplantados de medula óssea – ligue para (16) 3315-3280 / (16) 9 97817536.
Agradecimento especial a Renata Cristina Ferreira, que nos indicou a pauta.