Diva Florescer, Tatiane de Campobello relata como superou clínica de “cura trans”, ruas e Cracolândia: “Era o submundo” admin Fevereiro 12, 2019

Diva Florescer, Tatiane de Campobello relata como superou clínica de “cura trans”, ruas e Cracolândia: “Era o submundo”

Por Neto Lucon
Foto topo: Suzzy Muniz

Quem vê Tatiane de Campobello, mulher transexual de 28 anos, trabalhando como agente de saúde no centro de São Paulo e fazendo dublagens no espetáculo Divas Florescer, nem imagina a sua história de vida, marcada por muita luta, violações e superação.

Vinda da periferia de São Paulo, ela soube desde cedo o que era falta de oportunidade e situação de vulnerabilidade. Sendo uma mulher transexual, viu a transfobia mostrar suas garras de perto, as portas do mercado de trabalho formal se fecharem, as da prostituição se abrirem, acompanhadas das drogas e das violações.

Foram longos anos em que teve que driblar o estigma social, a cocaína e o crack, o acolhimento transfóbico da família evangélica, que a colocou em uma clínica para que ela deixasse de ser mulher transexual, as violações que sofreu na pista e também do “abraço forte” que recebeu da Cracolândia e nas ruas.

Nos momentos de dificuldade ela afirma que recorria à fé e a Deus. Até que em maio deste ano ela conheceu a Casa Florescer, um espaço que acolhe, dá abrigo, alimentação e encaminhamentos para travestis e mulheres transexuais sujeitas à vulnerabilidade social – ou seja, aquelas cujas condições excluem e as colocam à margem da sociedade e em situações precárias de vida.

Em bate-papo sincero com o NLUCON, Tatiane Campobello fala sobre essas experiências, faz reflexões sobre o que viveu e novas perspectivas.

– Como foi que você conheceu a Casa de Acolhida Florescer?

Eu cheguei no mês de maio, no inverno. Foi um dia muito marcante para mim, muito intenso na minha vida. Eu fiquei vulnerável e durante dois meses eu fiquei na rua, me prostitui durante 10 anos.

– Dez anos? Mas você é muito novinha…

Eu tenho 28 anos, vou fazer 29. E fui para a prostituição com 16. Foi quando comecei a trilhar o caminho do submundo, pois foi a porta que se abriu para mim e que acolheu o que eu queria ser. Eu achava que ser mulher era ter cabelão, andar com decote, unha feita, perfumada. Eu tinha essa referência de mulher. Como eu morava na periferia, aquele mundo não comportava esse sonho, era muito pequeno para mim.

– Foi logo depois que você disse ao mundo que é uma mulher transexual que aconteceu a situação de vulnerabilidade?

É, quando eu me autoafirmei como transexual foi um baque para a minha família. Ela até aceitava a homossexualidade, mas a transexualidade não. Com 15 anos, eu assumi que era homossexual. E com 16 eu me autoafirmei Tatiane. Tive que desbravar o mundo. Fugi da casa da minha mãe em uma sexta-feira com a roupa do corpo. Só retornei com 22 anos e a minha mãe já estava com uma cabeça bem diferente. Ela estava com câncer e evangélica, então a situação estava pior do que já era.

Em qual sentido estava pior?

A gente começou a conviver, eu arrumei um trabalho na época, mas tinha a questão da dicção. Foi a bagagem que eu adquiri da prostituição: a droga, a cocaína. Por volta dos 24, minha mãe me ofereceu ajuda para me internar em uma clínica. Só que ao chegar lá era uma clínica de “cura gay”. E eu tinha um baita de um cabelão liso, pois eu alisava o cabelo, e eles rasparam tudo e ainda fizeram risquinhos na minha cabeça. Aquilo era uma identidade minha, as pessoas colocavam vulgo de índia, pois me conheciam pelo cabelo. Eu trabalhava no Jacques Janine e já acordava passando prancha. Quando me vi com o cabelo curto, tive três dias com 40 graus de febre. Fiquei de cama por causa do emocional.

– O que mais você poderia falar sobre a experiência dentro desta clínica?

Eu estava vivendo coisas intensas naquela época: meu irmão havia sido preso, minha mãe com câncer, tinham raspado o meu cabelo, eu tinha voltado da prostituição com uma mãe na frente e a outra atrás, eu tinha voltado para a casa da minha família, era muita informação. Então aquele ambiente era um lugar de calma, a convivência com os meninos era tranquila. Mas o que mais me marcou foi esse corte de cabelo. Fiquei durante seis meses e, ao retornar para a casa da minha mãe, estava pior do que estava. Minha mãe tinha doado todas as minhas roupas femininas, que eu ganhava no salão.

– Sua mãe achava que havia te “curado” e que você havia deixado de ser mulher transexual?

Sim, ela me trouxe com vestes masculinas, cabelo raspado e tinha comprado terno, gravata, bermuda… Minha família é muito humilde, muito simples e eu pensei: Poxa, quanto minha mãe deve ter gastado na clínica e com essas roupas? Daí eu fiquei com pena de mim e dela por essa situação. Pensei: “meu Deus, não vou aguentar tudo isso”. Fiquei 15 dias após a internação e fui para a casa da cafetina de novo.

– E como foi retornar à prostituição?

Voltei de forma mais agressiva, pois eu já sabia como funcionava aquilo. Eu não tinha muita paciência. Se tirasse uma comigo, eu já enfiava a mão na cara e puxava a chave, ainda que eu apanhasse. Você traz aquela coisa da marginalidade, quando você percebe que o homem tem medo da exposição, do vexame, da vergonha. Daí ameaçava expor, que vai tirar o dinheiro. A combinar o valor e sair com muito mais do que você entrou. E nisso você vai entrando cada vez mais no submundo do submundo do submundo. Mas daí eu não tinha só a questão da cocaína, mas do crack também.

– Como a droga aparece nesses espaços?

É assim: você está parada na rua, cada carro é um universo, uma oportunidade diferente. Eu já conheci homens maravilhosos, homens nem tanto assim, homens cheirosos, homens fedidos, homens muito educados, mal educados, homens que te pagam bem e homens que vão tirar com você. E, ali, também vai haver homens drogados, que você não advinha. Por diversas vezes eu entrei no carro nem sonhando que rolaria droga e rolava, porque já traziam ou porque no meio do programa ele gozava e queria droga. E a gente já sabia onde rolava a droga, as biqueiras. Você começa a definhar no submundo, que vai descendo, descendo, descendo…

– Você consegue identificar quando está dependente da droga? Você acha que há controle?

Não há controle, mas você se percebe. Sua aparência muda, tudo fica diferente… Você não toma mais o hormônio, não cuida mais do cabelo. E para a prostituição isso é muito válido: ser a mulher do cabelão, do salto alto, do vestido de tubinho, dos cílios, do vestido de tubinho, um perfume marcante, o rebolado…

– Eu observo que muita gente tem preconceito em relação à prostituição e tem muita gente que fala só do lado positivo. O que você tirou desta experiência?

Eu tirei uma imagem muito negativa da prostituição. Nunca tive nada. Eu não vou ficar contando história, dizendo que era uma lenda. Imagina, meu amor. Era só mais uma na rua, ralando para pagar a cafetina e comer uma comida adequada. Mas essa não é a realidade de algumas, que dão muito certo. E isso não está relacionado com beleza, com aparência e cirurgia plástica. Está relacionado com axé, com estrela, nasceu para fazer aquilo ou não. O que eu trouxe de positivo é a vivência, a malandragem da rua, olhar no olho e perceber a malícia do mundo. Isso me despertou muito cedo.

– Você chegou a ir para a Cracolândia, né?

Quando eu saí da casa da minha mãe, fui para a casa da cafetina e acabei parando na rua. As portas que se abriram para mim foi a Cracolândia, que me abraçou de uma forma tão forte que fiquei uma semana. Fiquei vulnerável, fiquei em situação de rua. Sabia que não poderia mais voltar para a casa da minha mãe e que perderia a minha sanidade e a minha lucidez. E eu pedi assistência à vida. Sabe aquela bagagem do evangelho, do amor, de não desistir da vida, pois sou a imagem e semelhança de um Deus muito supremo? Eu invocava à vida e a existência de Deus. Conheci uma pessoa que me acolheu em uma situação de vulnerabilidade, embora estejamos em uma relação abusiva. Ele tem uma imagem muito forte, ele me assumiu, eu abracei, ele me abraçou… Eu estava na rua, mas tinha um homem para cuidar de mim, sabe? Eu permaneci durante dois meses. Até que quis fazer meu RG, recebi a ajuda de uma assistente social e peguei depois de 15 dias. Fiquei numa felicidade tão grande que quis ir atrás das minhas coisas.

– Mesmo com o RG com o nome masculino?

Mesmo com o nome masculino, porque ali era uma identidade, tinha um número e eu era alguém. Não devo nada para a polícia e quando alguém pergunta “tem documento”, eu mostro o RG. Se é para segurar uma vaga, já segura. Pensei por esse lado. Eu conheci o Prats, onde lavava a roupa, tomava banho e fazia a comida. E conheci o projeto Reviravolta, que entrei em um projeto de reciclagem. Só que meu marido fez uma agressão física visível e horrível, que me faz ter medo de ir morar com ele até hoje. Fui trabalhar com o hematoma e a assistente social veio falar comigo, falou sobre relacionamento abusivo e falou que me colocaria em uma casa de transexual. Eu falei: Meu Deus, só pode ser aquela casa que eu passo em frente todos os dias.

– Como foi chegar na Casa Florescer?

É a parte que eu mais gosto da história, pois foi uma guinada na minha vida de oportunidades. A vida é cheia de altos e baixos, mas tem oportunidades que você precisa abraçar. Uma delas é estar aqui no Florescer. Quem entender o que é essa casa e o que ela representa na questão política e social sabe porque ela vem para quebrar estereótipos e preconceitos. Cheguei em maio, num frio absurdo e pensei: “Meu Deus, vou contar minha história e acho que eles vão me aceitar”. Cheguei encontrei a Edilene, que tem uma imagem muito forte. Era uma conversa totalmente diferente do que eu vivia no submundo. Era uma sala, com cortina, veio um kit de higiene e uma coberta gostosa, confortável. Não era essas cobertas de albergue, que é qualquer coberta. Eu dormi um sono muito confortável e quando acordei, pensei: “Aqui vai ser o lugar onde vou conseguir organizar meus pensamentos, que eu estou tendo oportunidade de mudar minha vida”.

– De qual maneira a Casa Florescer tem contribuído em sua vida?

Primeiro, a assistente social disse que eu estaria protegida dentro do espaço da casa. Também consegui me empoderar de muitas coisas: do espaço que eu ocupava no planeta, de quem eu era, do que eu posso fazer, que eu sou uma mulher como qualquer outra, que eu posso ter minha família, que eu posso trabalhar, que eu não preciso ir para a prostituição, que eu não preciso alisar meu cabelo para ser mulher. Aliás, essa mulher fatal é de mídia, longe da real. Também tirei todos os meus documentos e consegui emprego.

– Como foi ir para o mercado formal de trabalho?

O primeiro durou três meses. Tive uma questão de saúde muito séria, que foi bagagem da prostituição. A sífilis. E quando eu tomava injeção, eu teria que ficar internada. Mas não tinha internação. Pensavam: “É sífilis, que se foda, vai morrer”. Só que essa medicação me dava um efeito colateral que eu dormia em todo lugar onde encostava. O psicólogo chegou a ir lá conversar com o médico, mas não obtivemos êxito. Daí decidi sair do serviço, pois sem ter saúde não conseguiria me organizar. Saí, fiz o tratamento de saúde, comecei a estudar. Mas daí surgiram as necessidades básicas do dia a dia, vontade de comer alguma comida diferente, de comprar um perfuminho… Me deu uns cinco minutos, fui sentir o ar, trilhei mais seis meses longe da casa e retornei. E quando retornei com tudo mais firmado, de que aquele mundo não era mais pra mim, que daqui a pouco estava com 30 e não tinha nada firmado. Agora a história melhora, que é quando eu comecei a trabalhar como agente de saúde, sou responsável por uma cracolândia e lido com todos os tipos de pessoas.

– Você acha que ter tido essa experiência em situação de vulnerabilidade te ajuda neste novo trabalho como agente de saúde?

Com certeza. É uma ferida aberta – cicatrizada, mas aberta – que ainda está no meu corpo. Vejo muitas coisas que criam por uma questão de marketing, que eu tenho que dizer: “isso não funciona. Já fui sua cliente e posso falar com propriedade que esse serviço não funciona”. A pessoa já entra em pânico. Mas também tenho que aprender que não é sempre que terei oportunidade de falar. E tenho que aprender a lidar com o dinheiro recebido no fim do mês. É uma nova maneira de se ganhar o dinheiro.

– O que você diria para as pessoas que costumam a julgar quando veem uma pessoa em situação de vulnerabilidade?

Às vezes a gente vê uma pessoa na rua e diz: “Olha, um nóia na rua. “Olha, que mulher vagabunda”. “Acho que ela vai fazer programa para fumar pedra”. Peraí: você foi lá perguntar de onde essa mulher veio? Você foi lá perguntar se ela já comeu alguma coisa hoje? Por que você não pergunta o nome da pessoa antes de julgar ela? Por que a gente é assim? Por que esse diálogo previsível? Por que essa visão previsível de ver a vida, se cada pessoa é mundo, se cada oportunidade é uma oportunidade?

– Oportunidade, você acha que é uma palavra-chave?

É a chave. Eu posso ter uma blusa que é linda, mas que não cabe mais em mim e que pode ficar ótima nas pessoas. Eu posso ter uma empresa e posso dar uma oportunidade diferente para alguém. Essa pessoa pode ser deficiente, pode ser uma transexual, pode ser uma pessoa com perfil muito diferente, pode ser uma pessoa com tatuagem… A oportunidade é uma coisa maravilhosa, que muda a vida das pessoas de várias formas. É transformadora. Mas infelizmente são poucas as pessoas que dão oportunidade para as mulheres transexuais. E isso é um bafo, pois quem acaba perdendo são eles. Temos capacidades maravilhosas, somos mulheres muito inteligentes, pois desde muito novas recebemos muitas pauladas de quatro quinas. Somos jóias lapidadas na base da quatro quinas.

– Eu te assisti no espetáculo Divas Florescer. Foi a primeira vez que esteve no palco?

Para mim foi uma oportunidade que transformou a minha vida. No mesmo ano que eu estive na rua eu também estive num palco, eu vesti um vestido de pedraria, eu me vi no camarim, e eu escutei gente perguntando da minha história, do meu nome. Eu me empoderei de uma certa forma que disse: “Agora os homens não têm vez de querer decidir se eu estarei com cílios grande, bunda grande, para mim pouco importa a opinião”. Divas foi o empoderamento de ir, soltar, que Deus realmente existe, que a gente é muito bonita, que a gente pode brilhar. Eu era uma pessoa muito preconceituosa.

– Como assim, preconceituosa?

Eu não me aceitava. Não aceitava ser transexual e não me aceitava o tom da minha pele. Eu me agredia todo dia alisando o cabelo. Quando rasparam a cabeça e eu tive que deixar o cabelo crescer, disse: “vou deixar ele crescer natural”.

– Tem alguma coisa que eu não perguntei, que é muito importante falar?

Eu queria falar sobre um mundo melhor, com mais oportunidade e do empoderamento das mulheres transexuais. Como diz o texto da peça Divas Florescer, nós não somos só peito e bunda. Nós podemos ser o peito, a bunda, a casa, a família, o trabalho, o respeito, a dignidade, a humildade, o amor, a vida. Nós podemos também falar de Deus, porque somos filhas e somos a imagem e semelhança de Deus. Ainda que as pessoas queiram nos roubar essa imagem e semelhança, ainda que a religião venha dizer que a gente é algo do demônio, ora lá quando Jesus Cristo veio na Terra, os próprios pastores da época, os fariseus, o crucificaram dizendo que era Deus Zebu, ele sendo o próprio filho de Deus. Então, quem é essa sociedade para me roubar essa herança? Eu sou a imagem e semelhança de Deus, sim.

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