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Por Neto Lucon
“Sou uma pessoa de peito e pau”. É assim que a profissional do sexo e militante dos direitos humanos Indianara Siqueira, de 45 anos, se intitula. Também é loiríssima e um dos mitos urbanos reais mais interessantes e corajosos que circulam pelo Brasil, atualmente no Rio de Janeiro, à frente do TransRevolução.
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Aos 12 anos já tomava hormônios femininos em Paranaguá, Paraná. Aos 16 saiu de casa e dois anos depois partiu rumo a São Paulo, adotando a identidade feminina. Chegou a morar nas ruas e, após ser admitida e demitida diversas vezes por patrões transfóbicos, tornou-se profissional do sexo e também militante.
Indianara, contudo, está longe do discurso que beira às lágrimas. Se um dia declarou que jamais iria trabalhar com sexo, hoje esta é uma das bandeiras que mais tem orgulho de levantar. Aliás, faz críticas à militância LGBT, que em um viés higienista esquece que 90% da população T trabalha na prostituição.
Ela cutuca a sociedade cisheteronormativa, moralista e patriarcal de peito aberto – literalmente!
Peito que ela decide expor na rua, obrigando policiais e a própria Justiça a pensar fora da caixinha. Vão prendê-la por Ultraje Público ao Pudor pelo “fenótipo feminino” – criando a jurisprudência de que travestis devem ser julgadas pela autodeclaração e não pelos documentos – ou então vão liberá-la levando em conta a documentação masculina– permitindo que outras também exibam?
O bate-papo com o NLUCON ocorreu pessoalmente, durante uma visita de Indianara no SSex BBox em São Paulo. Aliás, sempre precisa, ela deu boas e necessárias puxadas de orelha neste jornalista que vos escreve e que reproduz tudo na íntegra. Confira:
– Num período em que se faz necessário o politicamente correto, gostaria de saber como me refiro à sua profissão?
Profissional do sexo ou prostituta. A maioria prefere profissional do sexo. Eu ainda gosto das palavras “prostituta”, “puta”, pois acho que esvazia a força que isso tem como xingamento.
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Foto: Leon Diniz |
– Nos últimos anos, tenho escutado a frase “não é porque eu sou travesti que eu sou puta”. Embora saibamos que identidade de gênero nada tem relação com profissão, você acha que existe um pouco de moralismo, tabu e até preconceito neste discurso?
Na realidade, é um processo de separação higienista. É dizer: “eu sou assim, mas não faço isso” ou “não sou tão suja quanto essas pessoas” ou ainda “já que não sou tão suja, então vocês podem me aceitar”. O discurso não é: “sou travesti, não sou prostituta, mas alto lá, as prostitutas também tem direito e …”, entende?
– Mas você acha que essa higienização é muito forte até mesmo dentro da militância de travestis e mulheres transexuais?
Sim, e está aumentando cada vez mais. Essa higienização aparece em projetos de “inclusão social de travestis e transexuais para tirá-las da prostituição”, como se fossem salvá-las. Ou então quando você foca nessa “inclusão social” e esquece das prostitutas. Ou seja, as profissionais do sexo não têm o direito de serem incluídas socialmente? É isso que as pessoas não enxergam o quanto nestes discursos delas estão violentando outras vivências, outras pessoas e outras profissões.
– De qual maneira esse não falar sobre prostituição de maneira digna afeta as profissionais do sexo trans?
Isso causa sofrimento. Percebo que muitas pessoas, que assumiriam o trabalho na prostituição numa boa, passam a não assumir. Eu mesmo já passei por esse processo. Durante muito tempo eu dizia que trabalhava com turismo, que era profissional liberal, qualquer coisa, menos prostituta. Mas eu queria poder simplesmente falar sobre o meu trabalho, minha história de vida e não podia. É uma violência contra essas pessoas.
– A pauta das prostitutas atravessa a pauta trans da mesma maneira que a pauta trans atravessa a das prostitutas?
A regulamentação da prostituição como trabalho atravessa a pauta trans, porque a maioria das travestis e transexuais exerce essa profissão. Mas já o contrário, as pautas trans não atravessam a prostituição, porque muitas vezes nesta luta das travestis e transexuais elas querem se descaracterizar enquanto prostitutas.
– Isso é muito sério que você está dizendo, uma vez que mais de 90% do grupo está inserido na prostituição, de acordo com a ANTRA.
É algo sério,que não acontece só com as travestis e transexuais, mas também por conta do próprio movimento gay. Tudo bem você, sendo gay, ir para uma sauna e transar com 10 caras. Muitas vezes até pagar para transar com algum. Para os seus amigos, está tudo bem, afinal eles também fazem isso. Mas se algum dia você passar a ser prostituto, você já é visto de outra maneira e de maneira negativa. “Porque já passou a cobrar”, “porque já tá rotulado”. Entende?
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– O que precisamos desmistificar em relação à prostituição ainda hoje?
A principal é a gente começar a ver o sexo como uma coisa natural, como seres viventes. Não só como seres humanos, porque os animais também praticam e eles não sabem que são definidos como macho e fêmea, pois esta é uma definição humana sobre eles. Então é simplesmente deixar viver, encarar sexo como ir ao banheiro, se alimentar. Você pode praticar com outras pessoas, mas você não precisa necessariamente do outro para praticar, pode praticar sozinho. Acho que a gente tem que desmistificar dessa maneira, sabe? “Ah, uma relação sexual precisa de dois?”. Não. Quem disse isso? Uma relação sexual precisa dos seus desejos e da sua vontade, primeiramente. E depois o respeito pelas vontades também do outro. Mas há pessoas que vivem a sua sexualidade se masturbando. É tirar essa questão de que o sexo é sujo, pois o problema neste caso é a sacramentação sobre família, sexualidade, que leva ao estigma.
– Poderia contar como é a sua trajetória na prostituição?
Comecei a me prostituir em Santos, porque por mais que eu fizesse isso antes, eu não tinha muita noção. Eu estava em uma situação de morar na rua, dormia embaixo de um vagão de trem, onde as travestis se prostituíam. E a Paola me encontrou neste local e me acolheu. Ela me levou pra casa e me deu um ponto. Foi ela que, se alguém perguntasse “em quem eu me garanto”, eu dizia que era nela. “Você é minha filha”, disse ela. É importante dizer não fui explorada em nenhum momento. Ao contrário, ela cuidou muito de mim. Tive essa vantagem.
– Em algum momento você teve que trabalhar com preconceitos internos em relação à profissão?
Minha trajetória começa aí, por uma questão de que eu precisava sobreviver. Mas ao mesmo tempo foi algo que eu vi que fazia tão naturalmente que o problema todo era apenas cobrar por aquilo, era capitalizar. E a visão que tinha caiu por isso: “O problema da prostituição é cobrar?”. Ou seja, posso praticar sexo com 10 homens, no momento em que eu não cobro, “ok, estou exercendo a livre sexualidade”. Mas no momento em que eu cobro, existe toda a questão moralista, de que sexo não pode ser vendido, se é por prazer não pode ser capitalizado, ah, toda uma visão preconceituosa mesmo.
– No caso das travestis e transexuais, percebo que há uma preocupação sobre aquelas que não quererem estar na prostituição, mas estão por uma questão de estigma…
Muitas pessoas estão em outras profissões, que não também gostariam de exercer, mas que foram levadas a elas. Seja no caso das domésticas, garis, até no caso de médicos, advogados, que foram levados por uma cultura familiar, e que fariam qualquer outra coisa, menos isso. Eu conheço pessoas que passaram anos em consultório de advocacia e que largaram tudo e foram velejar, trabalhar como pesquisador. O trabalho sexual é a mesma coisa. É por uma questão financeira ou porque não tinha mercado de trabalho, daí foram para a prostituição e de repente viram que não tinha nada demais. Encontraram liberdade – eu mesma encontrei tanta liberdade, tanta formação na prostituição, que não abandonaria por nada.
– Mas você não pensa que as pessoas associam diretamente travesti com prostituição? E nem toda é. Como acabar com esta associação que confunde profissão com identidade de gênero e empurra algumas pessoas para este trabalho?
De fato, quando você diz que é travesti, as pessoas perguntam: “você trabalha onde?”. Mas não é em qual empresa, é em qual ponto ou local que você se prostitui. Eu não sei como mudar a educação. Mas acho que é com a educação que a gente quebra o estigma, mostrando várias vivências, várias pessoas, pessoas que transformam os seus corpos, pessoas que tem várias orientações sexuais além da hétero. Trazendo isso para a educação de uma maneira pedagógica a gente consegue romper com isso. Mas enquanto todas as pessoas não tiverem acesso a todas as informações, enquanto práticas e vivências forem anuladas por outras, através de livros em que estas histórias não são contadas, continuaremos com os estigmas e orientando os corpos de outras pessoas.
– Você mesma evitava se dizer profissional do sexo. O que mudou para você mudar o discurso e sentir orgulho da sua profissão?
Foram as conversas que tive com outras prostitutas, principalmente com Gabriela Leite (1951-2013). Ver uma mulher cis, mãe, puta, se declarar “sou puta, poderia fazer qualquer outra coisa, mas gosto de ser puta” foi importante. Essas conversas eram tão empoderadoras, tão livres que comecei a pensar do porquê não trazer essas conversas tão livres para outros espaços. Comecei a ver que não tinha nada demais em trabalhar com prostituição, porque eu gosto de sexo. Se eu cobro por sexo de uma maneira, seja por troca de serviço, por troca do prazer ou financeiramente, isso é uma questão particular. Isso qualquer outra profissão faz. Eu apenas capitalizei o sexo, então não vejo nada de errado. Mas o que me ajudou também foi o ativismo, foram os anos de ativismo, que me empoderaram para sair do estigma de “sou autônoma…” E dizer “sou puta e gosto do que faço”.
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Indianara e Gabriela Leite: referências |
– Você teve sorte de não ter sido explorada pela cafetina. Mas não é a realidade de muitas travestis, não concorda?
Concordo. Mas não é a realidade de muitas outras pessoas em outras situações. Quando as pessoas estão com vontade de fazer o seu lanchinho no Bobs’s ninguém vai saber o quanto esses trabalhadores são explorados pelas redes internacionais. Ninguém fica perguntando quando vai comprar a roupa na Renner quantas costureiras foram exploradas. Quando alguém compra o produto e vem escrito “Made in China” ninguém fica se perguntando quantos chineses são explorados para que este produto chegue muito barato aqui. Mas sempre se importam com a prostituição, outra vez por esta questão do estigma, do sexo, do corpo das pessoas.
– Entendi. Você pensa que esta preocupação sobre as profissionais do sexo é no fundo mentirosa, uma vez que essas questões existem em outras profissões, e que acaba sendo apenas mais uma maneira de desqualificar a prostituição?
Exatamente. As pessoas dizem “na prostituição existe o tráfico de pessoas, exploração…”. Mas existe o tráfico de pessoas e a exploração em vários setores da sociedade. Só que ninguém fala nisso, porque seria atacar o capitalismo, seria atacar os empresários, seria atacar uma parte da sociedade que não pode ser atacada. Agora, é bem mais fácil atacar pessoas estigmatizadas, pessoas que não estão conformes, pessoas que são lidas como erradas. É mais fácil atacar a prostituição e dizer que uma das grandes causas de tráfico de pessoas, de exploração, de cafetinagem de mulheres é a prostituição. Mas não é. Porque se a prostituição deixar de existir amanhã, a sociedade não vai deixar de explorar mulheres, crianças e adolescentes. A gente não precisa da rede de prostituição para explorar crianças e adolescentes. A gente já tem a Igreja Católica e ela já faz muito bem isso. Mas não se ataca a igreja católica. E essa igreja ataca a prostituição, diz que é um antro de exploração de crianças e adolescentes.
– O Brasil, que é visto como um país livre sexualmente, ainda carrega muitos tabus, né?
Sim, mas não é só o Brasil. É uma cultura mundial, machista, branca, patriarcal, de diminuição da mulher, de apropriação do corpo do outro, daquilo que não está conforme, daquilo que não é certo, aquilo que pode libertar muito. Os estrangeiros até pensam que vão chegar no Brasil e as pessoas vão estar trepando pelas ruas, pelas esquinas. Mas não é isso que acontece. Reproduzimos a colonização, mas tínhamos uma liberdade bem melhor antes de os colonizadores chegarem. Daí uma cultura se apropriou da outra na escrita, na teoria aprisionada em livros… No Brasil ocorre algo bem específico com as travestis e transexuais. Ele aparenta ser liberal – e ele é liberal mesmo em alguns aspectos – mas é um dos países que mais mata travestis e transexuais do mundo. Ele mata até mais que os países árabes. Mas, ao mesmo tempo, é um dos países em que essas pessoas convivem, transitam e conseguem uma maneira de se expressar, o que não acontece em outros países. Já no Iran, a transexualidade é reconhecida como direito e a homossexualidade não.
– Se não me engano, eles obrigam a entrar no processo transexualizador…
E existem especificidades de como a sociedade passa a te enxergar depois disso. Para as transexuais, você deixa de ser homem, que é como as pessoas enxergam, e assume papel de nada, que é o papel das mulheres. E os homens trans não são colocados no mesmo papel dos homens. Enfim, as culturas e vivências de alguns lugares têm essas contradições.
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– Durante o seu debate no SSex Bbox, você disse que não quer se inserir nesta sociedade. Ao contrário, quer destruí-la. Explica?
Como a nossa sociedade ocidental, religiosa e etc é fundamentada? É pela mentira. Ou então por apenas uma ótica, machista e patriarcal. Todos os livros que as pessoas aprendem nas escolas e nas universidades são de autores homens, arrasadoramente homens, brancos, classe médica, tido como filósofos e pensadores, mas sempre de uma ótica patriarcal e machista. Raramente vemos autoras mulheres, pessoas negras então não há nada, então as vivências de outras pessoas são anuladas e apagadas. Isso é justo? Não é. Por exemplo: prostitutas são contadas como feministas, mulheres à frente do seu tempo, sendo que na verdade elas eram prostitutas. As mulheres que levaram a Revolução Francesa pra frente, a história de Catarina a Grande não são contadas… E todas as mulheres que são contadas nestas histórias, no final ela sempre precisa de um homem para dar a ela ao valor que ela merece.
É só ver os filmes românticos, seriados: As mulheres começam todas empoderadas, fumando maconha e tal, mas no final elas sempre precisam daquele homem salvador da pátria. Engravidam, aquele filho tem o nome do pai, que assumiu a criança e é reproduzido aquele modelo de sempre. E, para mim, fodeu a história que estava sendo excelente até (risos). Nos seriados, quando vão introduzir o tema do aborto, uma menina diz que está querendo abortar e daí vem o menino e diz “Não, não aborte, vou assumir o nosso filho”. Não podia mostrar simplesmente ela decidindo: “Vou assumir e pronto” ou então “Não quero ter”. Então, eu falo que quero destruir por causa exatamente disso: para que outras histórias de outras pessoas sejam contadas. É dizer nas escolas que “Dom Pedro I proclamou realmente a Independência do Brasil, porque nesta época os homens é que tinham esse poder. Mas quem assinou realmente a Independência foi Maria Leopoldina, a imperatriz do Brasil, que naquela época era regente do reino, pois nesta época ele estava lá nas margens do Ipiranga”. É contar outra história de Rapunzel para empoderar as mulheres.
– Como seria uma nova história de Rapunzel?
Rapunzel estava aprisionada em uma torre, daí ela percebeu que o cabelo dela cresceu tanto, que ela mesma teve uma ideia: amarrou, cortou e desceu por ele. E saiu livre por aí. Ou seja, seria muito melhor. Mas não, a gente tem que falar que o príncipe subiu nas tranças dela e a ajudou sair. Gente, alguém sabe o peso de um homem agarrado nas suas tranças? Ela morreu ou então ficou toda fodida com dores na coluna porque o príncipe subiu pelo seu cabelo. Essas lendas absurdas podem ser contadas nas escolas, mas as histórias reais de travestis, transexuais, gays, lésbicas não podem. Ou seja, ninguém vai deixar o cabelo crescer, crescer, crescer, para subir numa torre e jogar. Então porque ele se transformaria em gay, travesti, transexual, etc?
– Você declarou durante o debate que não pensa em se formar em outra área…
Muita gente fala sobre formação, formação, formação, mas eu não preciso de formação, pois ela está feita na prática, porque eu sempre vou trabalhar com sexo. Quando eu não puder mais exercer a profissão, ou quando eu abrir uma casa para acolher as meninas que queiram trabalhar, eu sempre vou trabalhar com sexo de uma maneira ou de outra. Tenho isso bem claro, é o que eu gosto de fazer. Mas para outras pessoas, não. E este estigma em cima da prostituição provoca essa violência toda.
– Quando você era criança e adolescente, quais eram as histórias que você gostava?
Pinocchio, do Soldadinho de Chumbo, do Patinho feio… Ai, eu amava a história do Patinho Feio, achava ele coitadinho. Aquilo me doía na alma. Hoje eu analiso que estas histórias me faziam sentido e me doíam tanto porque esses personagens, assim como eu, não estavam conformes com essa sociedade. Pobre Soldadinho de Chumbo, que foi derretido na fogueira. A própria história da Pequena Sereia, que eu gosto até hoje, se assemelha a isso. Eu sempre gostei muito de ler, mas também percebo que a minha leitura sempre foi marcada por essa ótica patriarcal e machista.
– O fato de você querer destruir essa sociedade, não há um conflito em querer que a prostituição seja “legalizada” dentro deste mesmo sistema que você critica?
É “regulamentada”. Porque a prostituição não tem que ser “legalizada” no Brasil porque ela não é ilegal. E nunca foi ilegal. Ao contrário, ela até é reconhecida pelo Código Brasileiro de Ocupações, como uma ocupação legal.
– Sim, desculpe-me. Em querer que a prostituição seja “regulamentada”?
O que a gente pede é o reconhecimento da profissão como trabalho regulamentado. O direito das trabalhadoras e o seu lugar de trabalho. Eu acho importante, porque as pessoas se juntam para exercer as suas práticas e os seus corpos da maneira como quiserem. Tem gente que diz que “quando a Revolução chegar e o mundo se tornar socialista, e as pessoas não precisarão trocar mais sexo por dinheiro, então a prostituição será abolida”. Ah, então quer dizer que todas as outras profissões vão continuar existindo? As pessoas vão trocar as suas práticas umas com as outras. Ou seja, o vendedor de feijão vai trocar com o vendedor de arroz. Mas se eu quiser, mesmo depois do socialismo, quiser continuar trocando sexo por produtos eu não vou poder existir? A gente fala sobre a autonomia dos corpos, mas desde que certas pessoas não façam algo em seus corpos. Ou seja, a autonomia vai até determinado limite e até as pessoas que lutam por direitos se limitam em determinado campo.
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– Conversei com a militante Janaina Lima e ela disse que a violência policial, que foi tão marcante para a comunidade trans nos anos 80, continua acontecendo. O que pode dizer sobre isso?
Num determinado momento, depois da luta organizada dos movimentos sociais de travestis e transexuais, aquela violência que a polícia jogava a qualquer momento no camburão, levava para delegacia e deixava mofando por horas, tinha diminuído muito. Mas depois das Marchas de 2013, quando a polícia exerceu o seu poder opressor, que eles já tinham treinado nos anos 80 sobre essa população de travestis, transexuais prostitutas nas ruas, isso voltou. E como não houve muita reclamação da população em geral, ela passou a ser violenta, não só com as pessoas que estão nas ruas se prostituindo, moradores de rua e tal, ela está violenta com qualquer pessoa. Tanto que a gente vai a qualquer manifestação, a polícia chega atacando, isso é mostrado na televisão e eles não são punidos. Essa militarização da polícia está sendo grave. Mas ainda hoje muitas travestis são levadas para a delegacia, tem todos os seus direitos desrespeitados, como é o caso da Verônica Bolina, temos a Laura Vermont que além de ser espancada por cinco pessoas também foi agredida por policiais. A Verônica continua presa, mas os policiais que atiraram na Laura depois da agressão e contribuíram para a morte já foram liberados. É bem complicado falar sobre essas questões, mas eu vi que alguns momentos nós estamos retrocedendo, tanto na questão da polícia contra a população, e na visão da polícia de que algumas populações podem ser mais agredidas, já que eles estão agredindo as outras. Estamos perdendo as noções de respeito aos direitos adquiridos.
– Qual é a crítica que você teria para fazer sobre a prostituição?
A falta de união. Pois é a desunião que faz com que a profissão não seja regulamentada, por exemplo. Ou quando furam o bloqueio, uma greve.
– Como assim?
Quando a gente está num lugar e as prostitutas se recusam a aceitar as regras desse lugar, outras que chegam, ao contrário de comprarem a briga, elas dizem: “ah, vocês não querem? Ok, a gente vai”. Elas furam esse bloqueio, acabam prejudicando as outras e a si mesma. Essa falta de união que faz com que não tenhamos direitos reconhecidos. Se as prostitutas se unissem como elas se uniram para fazer o trabalho de prevenção HIV/Aids e tornar o Brasil referência, elas saberiam a força que têm para combater os estigmas e preconceitos. É a falta de união com que as pessoas continuam sendo agredidas.
– Travestis são conhecidas por mostrarem os seios em manifestações. Você criou um imbróglio com a Justiça do Rio ao tirar a blusa, ficar com os seios à mostra e ao mesmo tempo esfregar o RG com nome e gênero masculino. Foi algo de caso pensado?
Isso ocorre muito na Parada Gay, né? Mas no meu caso ocorreu na Marcha das Vadias, quando as meninas estavam preocupadas com esta questão legal: se a gente mostrar os seios, a gente pode ser detida por ultraje em público”, referindo a ilegalidade de alguns corpos. Daí veio uma coisa: “legalmente eu sou homem. Então eu vou pra frente da Marcha, eles vão ter que me prender ou prender vocês”. E se eles prenderem vocês, como é que eles vão lidar com a minha situação? Bom, fiquei seminua, as meninas também começaram a ficar, a Marcha seguiu. Depois, eu comecei a fazer além da Marcha. Porque também tem essa: se você faz em uma Marcha eles deixam passar. Mas o problema é que eu estou aqui sentada com você e de repente eu quero continuar sentada, mas com o peito de fora. Não era mais uma manifestação, sabe? Eu estava apenas exercendo o privilégio dos homens que o meu documento me dava. Eles chegavam e pediam para eu me vestir. “Mas eu estou vestida”, eu respondia. Eles apontavam para o meu peito de fora, mas eu ia até a minha bolsa, pegava o meu RG, mostrava que legalmente eu sou homem e apontava para todos os homens descamisados à minha volta. E dizia: “então você vai ter que prender todos eles”.
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– Mas quem acabava presa era você, né? O que você presenciou nesta discussão?
Eu era levada para a delegacia e participava da audiência para decidirem se ia ser julgada ou não. E foi em uma audiência que eu disse para a juíza: “preste bem atenção na decisão que vocês vão tomar aqui. Porque se vocês decidirem que eu deva ser condenada, vocês estão me condenando enquanto mulher e vocês vão estar abrindo uma jurisprudência para que as pessoas trans sejam respeitadas pelas suas determinações, pelas suas autodeclarações, através de um corpo transformado, e não através dos seus documentos. Então a legalidade aqui do documento vai ser rompido. E ao mesmo tempo se não me condenar, vocês estarão deixando bem claro que homens e mulheres não são iguais perante a lei. Porque, sendo homem eu não seria condenada, e sendo mulher eu seria condenada. Aí eles decidiram arquivar.
Mas você continua batendo nessa tecla, né?
Eu estava na Lapa caminhando, daí tirava a blusa e a polícia chegava. Depois de determinado tempo, eu chegava nas delegacias e alguns delegados já diziam: “pode levar de volta, a gente não quer aqui”. Eu passei a ser recusada (risos). E eu chegava na delegacia, às vezes muito bêbada, já protestando, e os delegados diziam que iriam me prender por desacato. E eu dizia: “Me prender por desacato? Mas é você que está me desacatando, é você que está me desrespeitando”. Quando entrava a minha advogada, Heloísa Melilo, eu dizia: “Helô, o que você está fazendo aqui?”. E ela dizia: “O que você acha? A namorada do delegado postou nas redes sociais para eu livrar eles de você”. Ou seja, eu nem precisava mais ligar mais para os advogados, os próprios policiais já faziam isso avisando o que eu estava.
– Você encontrou um ponto chave na discussão: legalidade dos documentos, papeis de gênero e a maneira como é lida…
O engraçado é quando um policial fala “você tem um fenótipo feminino”. E eu devolvo: “mas eu tenho que ser respeitada pelo meu fenótipo ou através da legalidade dos meus documentos?”. Porque se eu tenho direito pelo meu fenótipo, eu tenho que ser respeitada também em meus documentos. Enquanto em outros momentos vocês dizem que eu sou homem e que eu tenho que acessar os meus direitos enquanto homem, eu também quero acessar o direito de andar sem camisa. Aí esse direito é negado.
É o To be or not To be. E ao contrário do que as pessoas pensam que veio do Shakespeare, na realidade ele veio de uma história dos países árabes. Um primeiro ministro, vendo que um barbeiro não se curvava a ele, divulgou um decreto: os homens não podem ter barba, mas também não podem ir ao barbeiro, devem se barbear em casa. Era para foder a vida do barbeiro e para ele ir à falência. Daí o decreto é baixado, os homens começam a se barbear em casa, mas o barbeiro deixa a barba crescer. Aí um dia ele é preso por ser visto de barba e diz: “O decreto afirma que os homens não podem ter barba e ao mesmo tempo ele não pode ir ao barbeiro. Eu não posso ter barba, mas eu sou barbeiro. E, sendo barbeiro, eu não posso me barbear”. To be or not to be. A origem vem dessa história.
– Indianara é cultura. Você é uma mulher muito forte…
Não. Eu me defino hoje como pessoa de peito e pau. Porque a definição do que é travesti, do que é trans, do que é homem ou mulher não fui eu que criei. Foi essa essa sociedade. Agora, se eu tiver que aceitar uma definição, eu prefiro travesti pela marginalidade da palavra, pela força política da palavra, pelo histórico cultural da palavra. Porque transexual é um termo que surgiu para higienizar: “coitada, ela não tem culpa do que aconteceu, ela não tem um tratamento”.
– Ok, você é uma “pessoa de peito e pau” muito forte. Em qual momento você esmorece?
Quando vou para uma palestra e uma pessoa me indica um amigo que não está conforme, eu converso com ele e, anos depois, encontro essa pessoa já em processo de transição. E ela me diz que deixou aquela visão de carregar o mundo sobre si, está livre, alegre, sorridente. Ela encontrou dentro desse movimento uma pessoa que disse que ela podia, que não importava a idade, que ela poderia passar pela transição. Por outro lado, eu esmoreço quando pessoas morrem por não poderem assumir os seus corpos, a sua condição de orientação sexual. As pessoas ainda são assassinadas de diversas maneiras por uma questão de cultura e de religião. Você vê amigas suas sendo assassinadas ainda hoje e isso me deixa muito furiosa. São momentos em que eu quero me retirar e que seja o meu último dia. Há momentos em que eu digo que me tornei forte. Mas só me tornei forte porque eu apanhei muito. Isso me fortaleceu e me forjou. Me expos muito e me fragilizou.
– Qual é o seu sonho hoje em dia?
Depende muito do padeiro (risos). Eu cheguei aos 44, neste ano faço 45 e acho que o meu sonho foi alcançado porque eu tenho toda a liberdade de ser o que eu sou, de poder existir sem dar mais satisfação, não tenho mais obrigação de manter um discurso, não tenho mais pretensão de ter fãs, pois já posei nua, já fui capa de revista, já fui exposta em bancas pelo Brasil, assumi a minha posição como puta. E digo que tudo o que as pessoas esperam de mim, que eu seja marginal, que eu quebre tudo, eu posso surpreender, eu posso não fazer nada disso. Mas se eu tiver que fazer, foda-se, eu vou fazer. Na história do mega fone foi isso. “Ah, mas ela deu com o mega fone na cara do cara”. Sim, mas ele me agrediu primeiro. Eu estava com um megafone na mão e foi apenas uma reação da pessoa que estava sendo oprimida, acuada. Antes de ver a minha reação veja como foi a ação do cara contra mim e veja como toda a sociedade faz comigo. O que é um mega fone em cima na cara?
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Indianara e Neto Lucon durante a entrevista |
– (A advogada Heloísa Gama Alves estava presente e perguntou) Você esperava chegar aos 44 anos?
Não, eu achava que aos 30 eu já estaria morta. É por isso que eu falo que quando a expectativa de vida de travestis e transexuais foi para 25, eu cheguei a 30. Quando chegou a 30, eu cheguei aos 45. Então se eles aumentarem, talvez eu chegue aos 70 ou 80. Pela expectativa de vida nós somos a terceira geração. Hoje, temos Rogéria, Phedra de Córdoba, temos tantas outras que já. Eu me vejo bem. Eu acho que cheguei aos 45 bem. Na minha cabeça, eu tenho 24 anos.