Por Neto Lucon
Um povo sem memória é um povo sem história (e também sem autoestima). E Janaina Lima, 39 anos, é parte importante da história da militância de travestis e mulheres transexuais – e LGB – por respeito, direitos, cidadania e orgulho no Brasil.
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É militante, pedagoga, educadora social, profissional do sexo, pioneira em diversos espaços na militância e na sociedade. Acima de tudo, um ícone de resistência, questionamento, sensatez, acidez e sensibilidade. Também do discurso: “travesti é a própria bandeira”.
Nascida no Rio Grande do Norte e registrada na Paraíba, Janaina deu os primeiros passos na militância há mais de 10 anos por meio de um convite do grupo Identidade, de Campinas. Até então, já havia sido despedida do trabalho, apedrejada na escola e esfaqueada nas costas por um cliente.
Experiências que a faz levar a ação com paixão, seriedade e sangue quente. Tanto que, este jornalista que vos escreve, já a viu em diversas delas. Seja disponibilizando camisinhas para travestis profissionais do sexo, atuando em projetos para combater a exploração de menores, em palestras e discutindo políticas públicas para o grupo.
Abaixo, uma entrevista exclusiva ao NLUCON, realizada no apartamento de Janaina no centro de São Paulo. Prepara-se, reflexões importantes…
– Recentemente comemoramos o Dia da Visibilidade Trans. Como você avalia essas duas palavrinhas “visibilidade” e “trans”?
Penso que eu e muitas travestis temos uma mega visibilidade. Em qualquer que eu chego, por exemplo, todos os olhares são para mim. Ou seja, a visibilidade eu tenho, mas o lance é que essa visibilidade é pintada muito mais como algo negativo que positivo. Então, ainda hoje é importante falar de visibilidade e pensar em ações que destaque as qualidades existentes na travestilidade.
– E o que tem de melhor em ser travesti?
O bom é ter a liberdade de ser quem você é. É não ficar amarrada a algo que não é você e se assumir de fato. Eu sinto que estava presa e, a partir do momento em que me assumi travesti, me libertei. Para mim, travestilidade tem a ver com liberdade. É ser tão livre ao ponto de dizer nesta sociedade preconceituosa que sou travesti.
– A identidade travesti carrega vários preconceitos, estereótipos e estigmas – tanto é que algumas passaram a se assumir como transexual, transex, trans, também como forma de se higienizar. Por qual motivo você bate na tecla de ser travesti?
Porque de fato eu sou travesti. Porque se eu disser que sou transexual, é como se eu dissesse que eu sou mulher. E eu não consigo dizer que sou mulher, porque eu não sou mulher. Simone de Beauvoir disse que “Não se nasce mulher, torna-se”. Eu não nasci e nem quero me tornar uma mulher. Eu sou travesti e é esta a minha identidade. Então, se eu disser que sou qualquer outra coisa que não travesti, seria como se eu estivesse mentindo, viajando… Dentre as caixas que me apresentaram nos meus 3.9 de vida, o que mais me aproxima é a travestilidade. Tem a ver um pouco com a quebra do binarismo e das caixas “homem” e “mulher”.
– Você concorda que se assumir travesti é assumir uma identidade política brasileira, tendo em vista que o significado não existe em nenhum outro país do mundo? Existe essa preocupação?
Claro, a travestilidade tem uma identidade política muito forte e decisiva. Se vermos a história da travestilidade no Brasil, vamos perceber que ela é totalmente desassociada da palavra “travesti” do dicionário, da palavra “travesti” do CID-10, da palavra que as pessoas do mundo acham. Então, a figura da travesti no Brasil tem esse viés político, de resistência, de assumir algo diferente, de bater o pé para todas as imposições em que somos submetidas. Embora existam outros termos surgindo, não dá para deixar de pensar nas brasileiras que perderam a vida e que se assumiam travestis. E que por serem travestis perderam a vida. Seja nas esquinas, na rua, dentro do motel, seja na própria família, na comunidade…
– Acredita que a visibilidade mudou no decorrer dos anos?
Para a sociedade em si, eu creio que não. Para quem não me conhece, eu continuo sendo um viado. Para quem não tem acesso à travestilidade, também não acho que tenha mudado a ideia de que tinha sobre as travestis.
– Mas não houve uma pequena transformação de direitos ao longo dos anos? Hoje vemos travestis na escola, programas voltados…Ou você acha que a transfobia ainda continua a mesma, só se camuflou?
Existem as duas coisas. Existem as transformações que você diz, mas ainda é muito pouco. Comemorar seria viajar, ser Alice (no País das Maravilhas). Antes a travesti apanhava da polícia, mas você acha que ela não apanha hoje? Continua apanhando. A diferença é que é que não é tão público como antes. Mas se você for pega sozinha na madrugada por um policial preconceituoso, você corre o risco de apanhar.
Em algumas cidades você ainda vê travestis correndo e a polícia batendo… Eu passei por isso há pouquíssimo tempo. Eu fui abordada dirigindo, ele revirou o meu carro de cabeça para baixo, chegou a quebrar uma parte, me acuou… Ele só foi embora depois que pegou alguns documentos e viu quem eu era. Mas eu também acabei sofrendo uma violência. Nas escolas é a mesma coisa. Não quer dizer que ela está de portas abertas e preparada para lidar com uma aluna travesti. O que acontece é que por conta do movimento as pessoas estão tendo mais coragem para enfrentar tudo isso.
– Coloquei de novo “travesti é” no Google. E os resultados mostravam notícias de matérias policiais, assassinatos, envolvimentos no crime… Já se acostumou com esse tipo de abordagem ou ainda se entristece?
Sinceramente é algo que ainda me angustia. Uma amiga me ligou esses dias para perguntar se outra amiga havia morrido. Acabamos lembrando que há alguns anos a gente não tinha essa exposição na mídia e que fazia a conta de cabeça: “poxa, esse ano morreram sete amigas, oito…”. A violência e as mortes continuam, mas agora ela é noticiada, antes não. Mas cada vez que leio sinto uma angustia muito grande, ao ponto de eu pensar: “Será que isso vai acontecer comigo? Será que eu sou a próxima?”. Me angustia e provoca medo de algumas situações.
– Você chegou a levar uma facada nas costas de um homem que dizia gostar de travestis. Esta foi a maior violência transfóbica que você sofreu? De que maneira superar as violências num âmbito pessoal?
Todas as violências que eu sofri foram marcantes. Não dá para dizer que essa foi mais forte ou que a outra foi mais fraca. O que eu posso dizer é que levar uma facada nas costas, do nada, é algo muito forte. De você se ver diante da morte e perceber que as pessoas não se importam. Mas existiram outras situações que eu também poderia ter morrido. Mas sempre pensei que, se for para morrer desta forma, que seja. Não dá para fugir da travestilidade para fugir da violência. Isso seria o mesmo que negar a travestilidade, começar a me esconder e me camuflar. O que eu tenho que fazer é enfrentar. Eu preciso enfrentar, pois isso faz parte do meu cotidiano, este é o risco que todas nós corremos o tempo todo, porque há uma intolerância, porque as pessoas não se sensibilizam quando vê uma travesti sendo agredida. Se nós não enfrentarmos, isso continuará igual para sempre.
– Você acha que para a sociedade a vida de uma travesti vale menos que a vida de uma pessoa cis?
Não sei se vale alguma coisa para dizer que vale menos. É algo que as pessoas simplesmente não se sensibilizam. Não falam: “ai, coitada, morreu”. Não. A primeira pergunta que fazem é: “O que ela fez, o que ela aprontou?”. E isso me remete há quase 20 anos atrás, quando eu levei a facada. As pessoas me perguntavam: “Mas o que foi que você aprontou?”. E, hoje, 20 anos depois, continua a mesma coisa. As pessoas só vão dizer “coitada” se ela conseguir provar, depois de morta, que era inocente. Mas se tiver um resquício de interpretação diferente, as pessoas vão dizer: “morreu porque mereceu”. Percebe como o tratamento sempre é diferente?
– Você está com 39 anos e a expectativa de vida de uma travesti é de 30, 35. Considera-se uma sobrevivente?
Sempre digo que estou com nove no lucro, pois os assassinatos continuam. É só você ver nos jornais. As travestis continuam sendo assassinadas, continuam morrendo de aids, continuam tendo a morte abaixo dos 30 anos. Essa estatística não mudou.
Fotos em frente a obra Depois do Banho, de Victor Brecheret
– Jana, precisamos esclarecer algo. Você afirma ser travesti, pois quebra as caixas “homem” e
“mulher”, mas ao mesmo tempo luta pela retificação do nome, pela lei de identidade de gênero, baseada exatamente neste binarismo. Não há uma contradição?
Eu luto principalmente pelo respeito pela identidade da pessoa, seja ela travesti, transexual, transgênero, gay, crossdresser… Ela deve ser respeitada da maneira como se identifica. O principal é isso: buscar o respeito. E a partir daí vamos entrelaçando com outras questões.
– Por exemplo…
A possibilidade de uma travesti que tem o nome masculino virar piada caso este nome vire público é grande. E isso, como a gente já sabe, causa um constrangimento enorme e uma falta de respeito do mesmo tamanho. O que não quer dizer que ela precise necessariamente trocar imediatamente o nome, porque isso também não vai resolver. O preconceito pode permanecer de diversas formas. Mas a gente percebe que é mais fácil quando ela, que tem uma aparência feminina, também utiliza um prenome feminino. É uma das maneiras de evitar constrangimentos, falta de respeito… São estratégias.
– Qual é o grande direito que as travestis deveriam ir atrás?
As pessoas precisariam perceber qual é a real necessidade: “o que eu preciso é disso”. E, neste sentido, não dá para dizer que uma travesti da região sudeste que mora no Largo do Arouche tenha a prioridade de uma travesti que mora em Serra de São Bento, no nordeste. Mas há algumas coisas que a gente pode pensar por um todo. Quando pensamos na Lei de Identidade de Gênero, baseada na da Argentina, por exemplo, ela é algo que acaba unificando as bandeiras, e que acaba ajudando nesse sentido, que é o reconhecimento de uma identidade. Não estou dizendo que as travestis devem mudar de nome, devem ir para a escola. A lei te dá possibilidades e daí cada pessoa pode fazer de acordo com a sua própria necessidade. Se você acha que pode mudar de nome, você muda… Se não quiser, não muda. Simples.
– Por qual motivo você ainda não retificou o seu nome?
(risos). Outro dia eu estava pensando exatamente sobre isso. Eu não consigo te dizer com certeza absoluta por qual motivo não fiz. É algo que eu já dei início, mas que ainda não priorizei. E talvez isso demonstre que seja tão prioritário neste momento. Talvez porque não há um advogado que queira bancar a mudança de nome para travestis sem linkar ao CID, a uma doença, a laudos de psicólogos, de psiquiatras. Mas se eu encontrasse um advogado que dissesse: eu vou mudar para você enquanto travesti, porque a legislação garante que você pode mudar, porque esse nome te põe em constrangimento quando é citado em público, daí eu botaria mais fé. Eu prefiro confiar numa lei de identidade de gênero, que facilita essa mudança.
(Janaina na adolescência/ “Não vejo diferença de antes para agora”)
– Acho linda a história da escolha do seu nome. Conta aos leitores…
Quando eu me assumi novinha – e não me pergunte quando, porque eu não respondo pergunta de ENEM (risos) – talvez com um 14, 15 anos, eu tinha outro amiga que também estava em dúvida sobre qual nome. Surgiram 587 nomes, mas ela olhou para um quadro de uma sereia que tinha e disse que se chamaria Iara. E eu também gostava e gosto da figura da sereia. É enigmática, diferente, você não sabe se é de fato uma mulher ou se é um peixe. E, diante dessa dúvida, criou-se a palavra sereia. Se você parar para pensar, isso tem muito a ver com a travestilidade. Aí, puts, também quis um nome de sereia. Só que escolhi Janaina, que é mais ligada ao mar. A Iara é a dos rios.
– Atuando há mais de 10 anos, você é uma das maiores militantes do cenário de travestis. Onde começa a militância de uma travesti?
Bom, começa a partir do momento em que ela se assume para a sociedade. Mesmo sem embasamento, conhecimento, quando ela sai de casa como travesti ela começa a militar. Acho que é isso que eu sempre admirei nas travestis: botar aquela roupa, sair e enfrentar a sociedade. A bandeira dos gays, é a bandeira do arco-íris, a bandeira das pessoas trans ou transexuais é a bandeira azul e rosa. Já a bandeira travesti… Não tem, porque ela já é a própria bandeira.
– Muita gente diz que o movimento é GGG, mas as travestis sempre estiveram juntas nesta luta LGBT, né?
Quando o movimento surgiu, eles botaram todo mundo numa palavra: homossexual. E começaram a trazer as travestis para dentro desse grupo. As primeiras que chegaram, tiveram que abaixar a cabeça e ficar quieta. Até que elas começaram a se conscientizar, se apropriaram e bateram o pé: eu sou travesti. Disseram que queriam estar juntas na luta, mas que queriam o respeito por esta identidade. E é por isso que foi criada a necessidade do LGBT. E é por isso que há uma resistência do grupo se deixar levar um por termo guarda-chuva que engloba todo mundo, mas que ao mesmo tempo invisibiliza várias pessoas.
– Você se refere ao termo transgênero, transgente?
Sei que vários movimentos surgiram. Movimentos de pessoas trans, movimentos de mulheres trans, movimento de transmulheres, de transgente… Acho que cada um tem o seu direito, desde que consiga respeitar a individualidade do outro. E os movimentos têm perdido exatamente isso. As pessoas têm começado a se organizar agora, e acham que a partir da organização delas vão detonar todas as anteriores e que todas as pessoas devem virar aliadas delas. Isso não é bom. E eu falo isso porque existe uma pressão para que as travestis comecem a ser noticiadas como transgênero, referidas como transgênero, sem que a palavra “travesti” seja mencionada. Além disso, penso que o problema do brasileiro é que ele gosta de copiar o povo de fora e não dá valor ao que tem. Então, só porque nos Estados Unidos usam a palavra “transgender” a gente tem que trazer para cá e utilizar, independente se vai trazer invisibilidade para outras comunidades ou não? Eu não acho ruim que as pessoas se identificam como transgênero, mas acho ruim que as pessoas queiram que outras se identifiquem, sendo que elas não querem se identificar.
– Você diz que focar somente na palavra transgênero para definir travesti acaba invisibilizando o grupo?
Quando você fala da travesti, você está sim falando de um grupo específico, que foge da terminologia, que foge da palavra… Você fala de um grupo que ao longo da história do Brasil tem sobrevivido às duras penas e que não pode ser esquecido e nem substituído por uma palavra de uma hora para outra. A gente vai esquecer das pessoas que deram a vida por esta identidade? Vai querer invisibilizar uma identidade por uma palavra que engloba todo mundo? Então deixasse comunidade gay. Por qual motivo surgiu o LGBT? Para dar visibilidade para estas identidades… Faz parte de uma luta política.
– Antigamente, existia até uma rivalidade entre travestis e transexuais, tendo em vista que umas se sentiam mais mulheres que a outra. Como você avalia a relação destas duas categorias hoje em dia?
Existe isso ainda hoje, mas é em outro formato. Se antes as pessoas diziam “eu sou mulher e você não é”, hoje elas dizem “Eu sou e você também é”. Mas não é algo bacana, porque é uma história de “tem que ser”, “tem que assumir algo”. E vem com uma imposição para você falar que é algo que você não é. Algumas pessoas acham que se eu, que sou travesti, me assumir mulher vai diminuir o preconceito. Mas isso é uma mentira.
– Você acha que brigar para que uma travesti seja vista como mulher cis não ajuda no combate ao preconceito?
Não vai. A gente faz isso o tempo todo com palavras para minimizar algo. E não percebe que só estamos querendo fugir do preconceito e não enfrentá-lo. Quando eu digo que sou travesti e não mulher, é mais fácil enfrentar o preconceito, porque é mais focada a luta, porque estarei brigando por políticas públicas e respeito por pessoas com vivências parecidas com a minha – e que não é de uma mulher. Outro exemplo: Não dá para eu, que sou nordestina, começar a utilizar outra palavra que contempla outro grupo para lutar contra o preconceito. Eu só estaria querendo me livrar dele, entende? Eu falo que sou nordestina, porque é o que eu de fato sou, assim como sou travesti.
– O movimento continua sendo GGG?
O movimento ainda é GGG, porque depende muito do financiamento, depende muito de quem está lá no governo, então num país machista você tem que ser GGG. Se você olhar o movimento hoje, ele não foi, ele está GGG. Mesmo o movimento de lésbicas. E eu não acho que as travestis de hoje cobram mais que antes. Tudo vai depender do cheiroso (faz sinal com a mão, indicando dinheiro) que vai aparecer. Infelizmente a gente vive em uma sociedade onde o dinheiro cala a boca de muita gente, inclusive do movimento LGBT. Inclusive ao ponto de a pessoa preferir sujar a mão dela de sangue, entre aspas, porque quando ela se cala para algumas coisas ela está consentindo outras, ela acaba fazendo parte dessa violência também.
– O que você aprendeu na militância?
Nossa, o que posso responder? Eu aprendi muitas coisas, boas e ruins. E aprender não significa que você execute. Assim como bondade e maldade, você sabe o que é uma coisa e outra e nem por isso pratica. Tirando isso, eu acho que aprendi a me valorizar mais. Acho que ela também me deu muita força para, por exemplo, resistir inclusive nesta identidade de travesti. Perceber que, por mais que seja melhor eu ser outra coisa, eu aprendi que o melhor é ser quem eu sou, viver com sinceridade, verdade, com mais honestidade comigo mesma.
Você acredita na militância LGBT?
Hoje? (suspira) Eu acredito em alguns militantes LGBT. Na militância em geral, não. Mas em alguns militantes sim.
– Você é a favor da Parada?
Eu acho que a Parada teve um papel maravilhoso em termos de visibilidade. Ela trouxe muita coisa. Eu faço parte do grupo Identidade, que é o meu grupo de base, em Campinas, e a gente organizou a Parada por sete anos seguidos. Eu era conhecida como a travesti libertadora dos gays. Tinha até uma amiga que dizia que eu havia libertado os gays, que estavam fazendo o que querem e que os clientes estavam saindo com eles (risos). As pessoas criticam, mas a Parada deu liberdade para muita gente, deu voz, deu possibilidade para muita gente. Hoje, em vários espaços que você vai, você encontra mulheres de mãos dadas e homens de mãos dadas. Coisas que não via antes da Parada. Ela possibilitou que as pessoas fizessem isso na rua e que, quem parou para olhar, hoje olha mais tranquilamente.
Janaina, Kimberly Luciana Dias, Bianca Mahafe e Claudia Wonder
– O que você pensa sobre travestis com seios de fora em manifestações?
As pessoas tendem a achar que tudo o que a travesti faz é algo que vai ser negativo. Em momento algum elas procuram algo positivo. E você percebe isso até nas falas: “Vai ter uma manifestação, chama as travestis que elas fazem barraco”. O próprio movimento já faz isso. Eu ouço isso 24h: “Vamos chamar a Janaina que ela vai junto e já faz barraco”. Quer dizer, a travestilidade já está ligada nestas coisas. Daí o mostrar peito já é ligado a algo ofensivo. Mas se a gente parar para pensar temos reflexões bem interessantes: A travesti choca quando mostra a sua identidade, mas você não vê ninguém criticar os 500 boys que vem nos trios só de sunga. E eles são uma prioridade para as pessoas. Se não tiver homem de sunga no trio, não teve Parada. Além disso, porque no carnaval é válido ficar com o peito de fora? Por qual motivo na praia é válido fazer um topless? Por qual motivo um peito de fora incomoda tanto na Parada, sendo que estamos falando justamente de um ato de liberdade? Também não há um mínimo trabalho de conscientização. As pessoas só dizem: Não pode mostrar o peito e acabou. Ninguém perguntou porque ela estava mostrando, ninguém perguntou qual era o intuito…
– O que você acha do ativismo virtual?
Todo o ativismo é válido, seja virtual, seja presencial, grupal… Ele é necessário. Eu posso estar sozinha no elevador com uma pessoa e ali ter uma atitude que pode fazer uma mudança incrível. É válida desde que você tenha um objetivo de fato, que saiba o que quer e que não fique só no oba-oba.
– É difícil ser militante e ao mesmo tempo manter amizades, tendo em vista que a maioria das pessoas escorrega no preconceito?
Eu sou conhecida como uma pessoa chata, que quero tudo certinho. Só acho que quando eu tenho que falar, combater o preconceito, eu falo. Se possível, eu procuro fazer correções, sim. Eu fazia isso com a minha mãe. Minha mãe fazia coisas com os meus sobrinhos que eu dizia: “Olha, tá errado, educando dessa forma você está ensinando ele a ser preconceituoso futuramente”. Se eu fazia com a minha mãe, eu posso fazer com uma amiga, com uma pessoa que acha que é minha amiga e principalmente com um desconhecido. É claro que eu tenho precauções, dependendo do lugar eu prefiro evitar. Se eu estou dentro de um ônibus sozinha e estou sendo alvo de preconceito, eu prefiro descer, pois não sou doida (risos).
– Você já esteve na mídia diversas vezes como primeira travesti do interior de SP a cursar pedagogia na universidade, primeira travesti a ser conselheira Nacional de Saúde, primeira travesti a ser presidente no Conselho LGBT Municipal de São Paulo. Como é ser pioneira? E o que isso acarreta?
Não me apego a essas coisas, pois o ser pioneira é usado como algo ligado a celebridade, midiático, “oh”. E as pessoas só dão importância pelo inédito, pelo estrelismo, e não dá importância para o que está acontecendo dentro do Conselho, por exemplo. Isso incomoda. Se deixar, as pessoas passam a te ver de outra maneira. Explico: Aparecem me cobrando, me pedindo respostas, sendo que eu estou ali para lutar junto, para encontrar respostas juntos ou então cobrar de quem tem a resposta, que não sou eu. Quando se cria um “celebritismo” em cima das pessoas, as demais acham que você tem um poder que você não tem.
– Você atuava como profissional do sexo quando começou na militância, antes de se formar em pedagogia. Trabalhar nesta área, que é vista como um estigma, ainda hoje é um problema?
Eu não sei se eu parei alguma vez. Só sei que, quando eu estava em outros projetos e cumprindo outras funções, eu deixei de priorizar. Mas nunca deixei de dizer que sou profissional do sexo. Hoje, estou atuando mais, faço tranquilamente e não tenho problema em falar. Percebo que pesa menos (dizer isso) hoje que antes. Antes tinha muito mais preocupação com a moralidade, do que as pessoas iriam pensar. Mas não me preocupo mais com que as pessoas acham. Até porque não acho que a profissão do sexo seja indigna.
– Sempre defendo que o que deve ser combatido não é a profissão do sexo, mas o estigma. Até porque é uma profissão, em que há troca de serviço, satisfação e pagamento e deveria ser legalizada…
Tem gente que fala: “Ai, é horrível”. Mas para mim é horrível ter que lavar um banheiro. Eu lavo o da minha casa e odeio fazer esse tipo de serviço. Admiro quem faça, quem gosta de fazer, mas é algo que eu não gosto. E, por outro lado, eu não vejo algo ruim você fazer sexo e receber grana por isso. Hoje eu olho de outra forma, não me preocupo com o outro, preocupo comigo.
– Tem alguma meta, prazo para continuar fazendo programas?
Este não é o meu trabalho único. Eu trabalho com vendas, sempre vendi Natura, Avon, vendo roupas, calcinhas que “aquendam a neca”, vestidinhos, então acabei de abrir um CNPJ para trabalhar melhor isso. São duas rendas. Qual é a minha prioridade hoje? É sair do aluguel, ter um espaço físico para dizer “esse é meu”. Eu percebi que preciso de um lugar, porque antes eu achava que não ia envelhecer e hoje eu estou envelhecendo. Para uma travesti com quase 40 anos, já sou quase uma idosa, principalmente se for profissional do sexo, principalmente se for ligada à beleza, ao desejo.
– Aos 39, a vaidade pega mais?
Eu não sou tão vaidosa quanto aparento ser. Mas eu tenho um pingo de vaidade. Não tenho tanta certeza se estou melhor que há alguns anos. A única certeza que tenho é que meu peito está maior, e isso eu acho bom, eu gosto. Eu não tinha expectativa de envelhecer, hoje eu já tenho e talvez aumente a expectativa ao ponto de eu pensar em rugas, corpo… em N coisas que fazem diferencial de uma travesti.
– É verdade que você coleciona revista Playboy? É um fascínio pelo corpo feminino?
Sempre foi. Meu desejo sexual é pelo corpo do homem, mas sempre achei o corpo da mulher bem mais bonito. Eu gostava da produção, de olhar os corpos, de avaliar as capas. Mas não tive referências de beleza dali. Eu achava a Lucia Veríssimo, na Playboy de 82, linda. Uma que eu adorava olhar era a Pamela Anderson, por causa dos peitos. A Cida Marques, Mari Alexandre.
– Agora está explicado porque você tem seios tão grandes… Faria um ensaio nu?
(Risos). Faria algo ousado. Num banheiro masculino, usando mictório e com dois homens ao lado. Ou um ensaio dentro de uma casa, cozinhando, varrendo… Fazendo coisas que eu não faço, como se fizesse, para o lado sensual. Ou então, algo mais louco, numa avenida movimentada.
– Babado! O que você acha da representatividade de travestis na mídia?
Se eu for para o passado eu encontro, Thelma Lipp, Natasha Dumont… Mas se vier para o presente não consigo identificar, pois não consigo me ver na mídia. Por exemplo, eu tinha a Claudia Wonder que era uma pessoa que eu admirava muito e que me sentia representava no começo. Hoje, acho que a única que eu assisto e que gosto é a Patricia Araújo. Mesmo ela não se preocupando com militância, quando eu a vejo eu me sinto representada como travesti. Ela contribui positivamente, sim, porque se assume como tal.
– E dos ícones dos anos 80, Thelma Lipp ou Roberta Close?
Acho que a Roberta sempre teve mais mídia e a Thelma foi um pouco mais injustiçada em alguns pontos. Eu tive uma tendência maior por Thelma, apesar de encontrar hoje pouquíssimas coisas sobre ela. Mas tanto ela quanto a Roberta foram duas referências, principalmente em questão de beleza. Eu achava a Roberta linda, mas a Thelma eu invejava.
– Por falar em beleza e busca pela beleza. Você é a favor ou contra do silicone industrial?
Não sou a favor e nem contra do silicone líquido. Ele é uma realidade e a gente tem que pensar nele como uma realidade. Eu, por exemplo, não vejo outro meio de alcançar um formato físico satisfatório que não seja por meio do silicone industrial. Mas daí você vai falar das complicações. E tem gente que tem complicação com salsicha. É claro que ele traz um risco e é por isso que as pessoas tem que pensar bem o que estão fazendo, com quem está fazendo, onde estão aplicando e com quem estão aplicando. Não é só chegar e aplicar. Dizer que eu sou totalmente contra, seria uma hipocrisia. Acabei de fazer um retoque há três meses. Se você perguntar se eu faria novamente, ponto de interrogação.
– As meninas ainda hoje bombam?
É isso que eu falo: não vejo mudanças como as pessoas acham. Para mim, a travesti continua querendo ter peito, continua querendo ter silicone, continua botando silicone líquido. É lógico que quando você vai para o movimento você conhece pessoas que diferenciam disso, mas quando você vai para a base, elas estão todas com a bunda bombada de silicone, botando silicone, tomando hormônio, fazendo as mesmas coisas que fazíamos antigamente. É claro que os padrões de beleza mudaram, mas aquela busca continua.
– E os amores?
Os meus amores estão aqui: Felipa Cristina e o Bryan Brad (dois cachorrinhos), que eu acabei de adotar. A minha família, por exemplo, é algo que eu estimo muito. Os meus sobrinhos eu amo de paixão, os amigos mais sinceros. Hoje não me imagino mais casando, só com o encomendador. Eu já fui casada. Já morei junto. Uai, foi bom uns três anos e 11 meses, e no último mês foi um desastre que conseguiu derrubar todos os momentos bons. É algo que eu não procuro.
– Sempre falo da Camilla de Castro (que cometeu suicídio), que deixou uma carta dizendo que não há amor para as travestis. Você concorda?
Existe o amor, mas não aquele amor que elas acreditam. Às vezes a gente e qualquer pessoa busca um tipo de amor que não existe em lugar nenhum. Não é que ele não exista para nós, ele não existe para diversas pessoas. Observo que não há esse amor real da forma que elas procuram, o casamento perfeito, a fantasia… Se essas fantasias não forem quebradas, há grandes chances de termos grandes frustrações.
– Jana, você aparenta ser uma travesti forte emocionalmente. Quando você chora?
Sempre! Mas nunca na presença das pessoas. Eu não consigo. É algo que vem de… Não sei. Nunca consegui chorar na frente de alguém. Eu choro muito pela falta da minha mãe, às vezes quando eu estou sozinha, dirigindo. Mas quando estou chegando no local, dou uma paradinha, me recomponho. É algo íntimo chorar. Chorar é mais íntimo que fazer sexo ou fazer.
– Você sempre fala da sua mãe. Ela te ajudou de alguma forma na construção da sua travestilidade?
Eu acho que a minha mãe era mais a minha amiga. Era minha mãe, eu amava, mas em termos de travestilidade eu não tenho muito a acrescentar a ela. O que ela tinha era um grande amor por mim e ela sempre me respeitou, nas mais diversas formas, seja na feminina, seja me respeitando pelo nome de Janaina. Foi algo que ela começou a fazer quando tinha gente perto, para não causar constrangimento, e depois começou a ficar na vida cotidiana. Não foi uma imposição. O meu pai foi ao contrário. Ele já conversava comigo, falava que eu tinha que trabalhar e ter um futuro, pois eu como travesti precisaria de autonomia. Ele também foi importante porque, quando apareci de Janaina, ele perguntou: Como eu te chamo? E eu falei: “Uai, do mesmo jeito, pelo nome de registro”. Mas ele disse: “Se você fez essa escolha, essa transformação, você deve ter adotado um nome, e a gente vai te respeitar”. Eles conseguiram ter essa sensibilidade.
– O que diria para as travestis da nova geração?
O recado maior é para cada uma olhar para si e conseguir reconhecer para aquilo que ela é, seja travesti, mulher, homem… A pessoa tem que olhar para si e ser sincera contigo. A partir do momento em que ela é sincera com ela mesma, ela consegue passar isso para outra pessoa. E procurar também sempre respeitar o outro na sua diferença.
– E qual é o seu sonho?
Hoje, na militância o objetivo é ter a lei de identidade de gênero, que seria muito importante para todos e todas. E, pessoalmente, quero uma casa própria. Bom, é claro que eu quero uma sociedade mais justa, igualitária, respeitosa… O problema maior não é aceitar o outro, é não respeitar. Sempre digo: Se conseguir aceitar, aceita. Mas se não der, respeita. O respeito é algo que, se a gente conseguir se disciplinar, retorna para nós também, e traz uma mudança mais significativa.
– Jana, o que é a vida?
O que é a vida? É tudo isso que a gente faz, é apanhar, é bater, é chorar, é sorrir. A vida é ser travesti.