Por Neto Lucon
O motorista Kauan Gaspar estava nesta segunda-feira (24) com o coração acelerado quando entrou na Igreja Catedral, em Mogi das Cruzes ao lado da namorada, a estudante Nathalia Biaggio. Ele, que é um homem trans, tirou as alianças, ajoelhou e fez um pedido de noivado para ela, que é uma mulher cis. A maior expectativa: um sim.
Para quem não sabe, homem trans é a pessoa que foi designada mulher ao nascer, mas que se identifica com o gênero masculino e é um homem. Já mulher cis é a pessoa que foi designada mulher ao nascer e que se entende como mulher.
O casal se conheceu em um almoço na casa da avó dele, pois a mãe dela é amiga de um tio dele. Kauan foi apresentado por um nome feminino, que Nathalia não entendeu num primeiro momento. “A imagem que apareceu foi a de um homem e apresentaram ele com um nome feminino?”. E logo perguntou como ele gostaria de ser tratado.
A sintonia foi imediata. Eles conversaram muito e até dançaram uma música juntos. Tudo registrado em vídeo pelos familiares, que nem cogitavam um futuro romance. Depois, trocaram números de telefone, foram adicionados em um grupo de amigos em comum e começaram a sair juntos. Num primeiro momento, apenas como amigos – até porque ele estava abalado com o fim de um relacionamento.
“Certo dia, uma amiga veio me falar que tinha um cara do grupo que estava interessado em mim”. Havia vários rapazes, mas ela só estava interessada em um. Era a pessoa que ela gostava de estar perto, conversar, olhar, sentia atração… Kauan. Até que rolou o primeiro beijo. Inesquecível. Mas, como ela nem pensava em namorar, pois se considerava muito nova, e nesses desencontros tão comuns, logo eles começaram a ficar com outras pessoas.
“Sempre soube que era um homem, mas não tinha informação” |
O DERRAME
Nathalia ficava com outro rapaz, mas não tirou Kauan da cabeça, tampouco de sua vida. Ao contrário, “ficávamos sem ninguém saber, era algo só nosso, mas comecei a demonstrar sentimentos que eram desconhecidos e que não tinha ideia de como controlar”.
Em 2015, Kauan começou a aplicar injeções de testosterona – inicialmente sem acompanhamento médico e, como ele mesmo diz, “tudo errado”. Até que tomou uma alta quantia de hormônios e teve um derrame. Assim que soube do Acidente Vascular Cerebral (AVC) de Kauan, Nathalia se desesperou.
“Vi que era amor no dia que ele estava na minha frente, correndo risco de morte e eu sem reação. Não consegui sair mais de perto dele”, conta. Ao ver o desespero dela, ele chegou a pedi-la em namoro dentro do hospital e “todo torto”. “Ela achou que era brincadeira, pois eu estava grogue dos remédios e das sequelas do AVC”, diz com bom humor.
Todos os dias que ele acordava, dizia: “eu lembro que você é minha namorada, até ela acreditar. Desde então, ela não saiu do meu lado do hospital e acompanha toda a minha transição”.
No início, eles tiveram problemas familiares com o namoro, mas no geral as duas famílias se respeitam e os pais aceitam muito bem. “Meus pais, então, o adoram. E nossas mães sempre que podem nos ajudam e estão conversando com a gente”. Kauan revela que sua mãe faz parte do grupo “Mães Pela Diversidade” e que inclusive acompanha o NLUCON.
“Meus pais o adoram”, diz Nathalia |
A TRANSIÇÃO
Quando ainda estava no hospital, Kauan conheceu a neurologista chamada Vânia Christina Garofalo Fidalgo – que ele classifica como um anjo. Ela disse que ele não precisava ficar sofrendo sozinho, que não precisava se automedicar e que disse existia um tratamento para que eu fizesse a hormonização. O chamado “processo transexualizador”.
“Eu sempre me senti homem, acompanhava o Thammy o T. Brant, achava incrível, mas não tinha informação. Fui saber após o derrame, com a neurologista. Aí, conforme eu ia buscando informações, eu repetia ‘é isso que eu sou’. E cada vez eu descobria mais e mais. Minha mãe chegou a me levar em psicólogos quando eu era menor, mas ninguém me entendia. Hoje, ela diz que se tivesse informação teria iniciado o processo mais cedo”, afirma.
Em 2016 foi quando ele realmente iniciou o tratamento com orientação de uma endocrinologista e, com a ajuda da mãe, realizou em abril deste ano conseguiu a mamoplastia masculinizadora (cirurgia que masculiniza o peitoral) com o doutor Thiago Marra (“outro anjo”). A namorada acompanhou cada passo e ficava feliz ao ver que cada vez mais Kauan estava confortável com o próprio corpo.
“Admiro muito a força que ele tem de ir atrás e fazer dar certo o que quer. O que mais gosto de fazer com ele é conquistar cada pedacinho do Kauan que estava a tanto tempo dentro dele”, contou. Já ele se sentia pleno por estar vivenciando aquele momento, sendo amado e acolhido a cada etapa de sua transição.
“Gosto de conquistar cada pedacinho do Kauan que estava dentro dele” |
Levantar bandeira é algo que ainda provoca medo em Nathalia pela segurança do noivo. “Estamos no país que mais mata pessoas trans no mundo. Se ele quiser botar a cara, eu boto junto, mas não é algo que eu fique incentivando. De qualquer forma, já participamos de um Fórum LGBT e apoio totalmente que ele ajude outras pessoas trans e participe destes ambientes”.
Kauan afirma que ajuda sempre que pode, que doou binders, participa de rodas de conversa e que sempre fala da sua experiência negativa com a automedicação.
O(S) PEDIDO(S) No dia 1º de abril, Kauan foi buscar a namorada no trabalho e ofereceu uma coxinha. Dentro dela, havia um anel e um solitário. “Mordi algo duro e comecei a limpar. Mas não conseguia acreditar. Eu chorava e ria, pois achava que ele estivesse brincando, por ser o dia da mentira”, conta ela, que acabou achando que era mentira mesmo. No dia 24, quando ele tirou os pontos da cirurgia, o casal foi até a igreja para agradecer. “Acreditamos muito em Deus e temos uma fé enorme”, declarou ele. Mas logo na entrada ele pediu para uma moça que estava no espaço tirar uma fotografia. Kauan se ajoelhou, entregou as alianças e a pediu em noivado. A resposta: “Sim”, marcada por um gigantesco sorriso de ambos. “Ele pediu para uma moça que estava lá registrar o momento. Ele se ajoelhou e me entregou as alianças para oficializar ali mesmo. Para ele ter a aliança também. Eu amei, do jeitinho que é. Foi fofo”, disse Nathalia.
Para o motorista, o momento não poderia ser menos especial, afinal “ela é uma mulher maravilhosa”.
“Não poderia ser menos especial, pois ela é maravilhosa” |
VIDA DE CASAL Morando juntos em um apartamento desde dezembro de 2016, eles pretendem oficializar a relação e se casar daqui dois ou três anos. Enquanto ele diz que pensa em casar na Igreja Santuário Diocesano do Bom Jesus, Nathalia espera se casar num lugar aberto, com muito verde.
A vida a dois traz desafios diários, que eles afirmam lidar muito bem. “Morar com alguém que foi criado de uma forma diferente é difícil, mas temos um equilíbrio. Da forma que lidamos com os problemas, está dando tudo certo. Não vamos medir esforços”, diz ela.
Eles afirmam que estão vivendo cada momento, que fazem projetos e que se organizam para realiza-los. Primeiro, foi a cirurgia. Agora, pretendem iniciar a retificação do nome e gênero da documentação. “O próximo passo é construir a nossa casa, casar, ter a benção dos nossos pais diante de Deus”, diz Nathalia.
O mais importante eles já têm: o respeito, o amor e a cumplicidade. E a história está só começando…
“Morar junto é difícil, mas temos equilíbrio” |
Com a cachorrinha Mel, adotada pelo casal |