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Por Neto Lucon
Depois de alguns anos na Ásia, Amanda Guimarães – a Mandy Candy do Youtube – está no Brasil. E com cabelos roxos! O motivo é o lançamento do seu primeiro livro, “Meu Nome É Amanda”, que fala sobre momentos de sua trajetória, vivência trans e curiosidades do seu famoso canal.
Sim, porque se Kéfera, Jout Jout, Felipe Neto e outros youtubers cis lançam livro, a nossa maior representante trans no Youtube – com o maior número de seguidores no Youtube (são quase 300 mil!) – também merece ter suas reflexões contadas e publicadas.
Na editora Rocco – a mesma de Harry Potter, Divergente e Jogos Vorazes – Amanda escreve com linguagem leve, divertida e já conhecida por seus marotos “maravilhosos – mas não tão maravilhosos assim, né?”. E é uma importante ferramenta contra a transfobia. Detalhe: o público vai de crianças a jovens adultos.
Em meio a uma agenda cheia, O NLUCON conseguiu alguns momentos pessoalmente com Mandy. E pôde ver a mesma garota brincalhona, divertida e amiga dos vídeos. E consciente da possibilidade de closes errados e novas desconstruções. Não é por acaso que se tornou uma das vozes poderosas e maravilhosas do Youtube.
Confira:
– Você ficou alguns anos fora do Brasil. Sabendo que nos últimos anos ele foi considerado o país que mais mata travestis e transexuais, sentiu medo nesta volta?
Senti, porque fiquei dois anos sem voltar. Achei que ia voltar para cá e perder o meu celular no primeiro dia. No segundo, ia levar uma lampadada na cara. Mas não aconteceu. Ao contrário, estou recebendo muito carinho.
– O que pode adiantar do livro “Meu Nome é Amanda”?
É o livro que eu conto a minha vivência como mulher trans, como me descobri e o que sofri de transfobia. Tem várias histórias que eu ainda não contei do canal, de homens que deram fora comigo… É para mostrar para as pessoas: vamos parar de dar close errado, porque a gente é igualzinho como vocês. Uma pessoa trans é igual a uma pessoa cis. E espero que um dia acabe esse cis e trans e sejamos todos apenas pessoas. Podem esperar emoções, porque quem leu chorou.
– Percebo que muitas mulheres transexuais, depois que passam pela CRS (cirurgia de redesignação sexual), preferem se esquivar e não falar sobre a questão trans. Talvez pelo medo do preconceito. Foi difícil revelar para seus seguidores que é uma mulher transexual?
Foi, porque eu também tive essa fase de querer esconder de todo mundo que sou trans. Passei uns quatro anos vivendo em stealth (algo como “invisível”), pois tinha medo de perder todo mundo que conheci pelo preconceito. Só que me incomodava muito escutar as pessoas falando para mim, sem saber que eu sou trans: “Ai, o travesti é isso e aquilo”. Pensava: será que ela deixaria de gostar de mim só porque sou trans? Além disso, já vivi parte da minha vida fingindo que era um menino e esse tipo de coisa era como se me obrigasse a viver outro personagem. Não que eu não seja uma mulher, mas estava escondendo dos outros uma parte do que eu sou. Aí decidi fazer um vídeo no Youtube e pensei que, se fosse para perder todos os meus amigos, que eu perdesse sendo quem sou. E tirei esse elefante das costas.
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– Aconteceu algo específico para essa decisão?
Quando comecei a postar no Youtube, ninguém sabia que sou trans. Daí sempre tinha uns comentários do tipo: “nossa, essa mina parece um traveco”. E eu entrava em paranoia. “Meu Deus, vão descobrir que eu sou trans, vou perder meus amigos, vou perder os meus contatos de trabalho”. Daí eu apagava o comentário e bloqueava o vídeo. Até que eu publiquei um vídeo falando que sou trans mais para um desencargo: “Sou mesmo e daí?”. Mas é claro que eu estava com o cu na mão (risos).
– E o que aconteceu imediatamente após a postagem?
Postei durante a noite na Tailândia – era dia no Brasil – fechei o computador e fui dormir. Não queria ver o comentário de ninguém, achei que todo mundo fosse me excluir, que eu ia virar meme na internet. Porque já existiam vários memes de trans, né? Quando a Ariadna estava no BBB, faziam postagens com fotos dela antigamente. Então eu pensava que aconteceria o mesmo. Só quando eu acordei de manhã e abri… Gente, só mensagem positiva. As pessoas dizendo que me admiravam demais por eu ter me aberto, isso e aquilo. Passei o dia todo lendo as mensagens, tanto no Facebook quanto no Youtube, e chorando feito um bebê.
– Você avalia como algo positivo e importante, então… Quais são as reflexões que você tira e gostaria de dizer para outras pessoas trans, que enfrenta esse mesmo dilema?
Foi positivo, não só para o crescimento do canal – eu tinha 2 mil inscritos e passei para cinco – mas também para a minha autoconfiança. Eu vi que, sendo trans ou não, eu sou maravilhosa do jeito que eu sou, como qualquer outra pessoa. Por ter vivido nesse meio cisgênero, eu via muitas pessoas duas caras. Por exemplo: se tivesse uma amiga trans aqui, ele ia tratar super bem, mas ela ia só sair daqui, que ia começar a fofoquinha: “sabia que era homem?”. Eu convivia muito com isso, então eu vi que abrindo que sou uma mulher transexual para a pessoa, eu saberia quem realmente gosta de ti. Isso não tem nada que pague, não tem preço.
– Em relação ao conteúdo do canal, foi um divisor de águas?
Mudou tudo… Porque antes eu fazia game play e o meu sonho era ser gamer no Youtube. Eu sempre fui ligada a jogos, a anime. Mas depois que eu me assumi mulher trans, as pessoas começaram a pedir vídeos sobre isso. Porque 90% di meu público era pessoa cisgênera, hétero e homem. Então eles não conheciam o assunto e enviavam perguntas. Decidi fazer um canal porque não existia quase nada falando sobre o assunto no Youtube. Quando tinha, apareciam termos difíceis, que até hoje eu não sei.
– Quais são as perguntas mais fazem para você? E quais são aquelas que te incomodam?
Como sou muito brincalhona, falo tudo abertamente… Acho que é melhor perguntar para mim, que já estou dando a cara a tapa, que sair perguntando para outra pessoa trans na rua… As perguntas que mais fazem para mim, depois que souberam que eu fiz a cirurgia, é se eu sinto prazer. “Ah, é verdade que quando faz a cirurgia perde o prazer, porque não sei quem fez e dizem que não sente nada”. Se é fácil de arrumar namorado, como se isso fosse muito importante. Sempre perguntam se a minha voz já era assim, e como faz para mudar a voz. E tem muita menina, em início de transição, que me pergunta qual hormônio eu uso. Mas daí eu respondo: “menina, você precisa ir para um médico”.
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– O que você acha que ainda hoje a gente precisa desmistificar sobre as mulheres trans?
Achar que toda trans só serve para sexo, para o fetiche. As pessoas ainda acham que a gente se transforma para ficar com homens, para ser aceita por um homem – o que não tem nada a ver. Ou pior, quando acham que a gente muda tudo para “enganar” um boy na balada. Outra coisa que as pessoas precisam tirar da cabecinha é que a gente escolheu ser assim. Mas quem é que vai escolher algo, sair na rua e não saber se vai voltar viva, sofrer com olhares de todo mundo ou não saber se vai levar uma lampadada na cara?
– Como é falar de maneira leve e brincalhona sobre uma comunidade que é muito marginalizada? Sente algum tipo de pressão da militância?
É muito difícil, porque às vezes eu tento falar sério, mas dá dois minutos e eu já estou fazendo piada. Mas rola uma cobrança, porque o pessoal acha que por eu ser trans e estar no Youtube, eu tenho como obrigação falar tudo certinho ou abordar todos os termos certinhos. Caso contrário, eu posso estar contribuindo com a transfobia, por eu falar “piroco”, por eu falar que já tive pinto, por mostrar a minha foto do antes e depois. Mas para mim é exatamente o contrário. Falando eu vou desmistificar tudo isso. Porque realmente eu já tive pinto. Realmente eu já tive a aparência de um menino e hoje eu estou dessa forma. E mostrando isso, eu posso ajudar uma pessoa trans ainda não transionada a pensar: “Puts, se ela conseguiu isso, eu também consigo”.
– Qual é o contato com os youtubers famosinhos?
Eu não tenho muitos amigos youtubers famosos. Eu falo mais com o pessoal LGBT do Youtube. A Lorelay Fox, Canal das Bee, Põe na Roda, a Queen B, a Bianca, Hugo Nask. Mas agora já tenho youtubers fora do meio LGBT que estão me procurando para fazer vídeos sobre isso, porque eles realmente não sabem. Disseram até que encontraram no Google um texto com as perguntas que não se devem a fazer uma pessoa trans, e eram as perguntas que eles fariam para mim (risos). Perguntaram se poderiam fazer mesmo assim, e eu aceitei.
– Como é o cenário trans de Hong Kong?
Não faço ideia como é o cenário trans lá, porque não tenho muitos conhecidos. Eu tenho um namorado lá, moro com ele, trabalho com Youtube. E quando está rolando o dia lá, eu estou dormindo porque o meu Youtube é no Brasil, e passo a maior parte da madrugada acordada. E como a maior parte não sabe que eu sou trans, eu não sofro transfobia. Porque as pessoas olham para mim e não sabem.
– Você acha que é importante termos representatividade trans na mídia? O que acha de atores cis interpretarem trans?
Se existissem mulheres trans interpretando mulheres cis na TV eu não acharia nada errado que pessoas cis interpretassem pessoas trans. Mas pessoa trans não tem oportunidade nenhuma. E até personagens trans estão colocando pessoas cis. Eu não me identifico com nada. Se eu ver o Cauã Reymond interpretando uma mulher trans eu vou ficar com uma cara de tacho. Sei lá, não sei se é errado. Porque tem tanta atriz trans maravilhosa por aí, que podia estar fazendo o mesmo papel e tendo oportunidade.
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– Você chegou ter alguma referência trans?
Como sempre fui muito fã de anime, a minha maior representatividade foi a (cantora) Harisu (foto acima). É uma coreana e era a rainha da época. Eu lembro que tinha foto dela de wallpaper no computador porque queria ser que nem ela. Eu até falo no livro que a minha meta é ser igual a ela, mas que infelizmente não nasci na Ásia (risos). De brasileiras, eu não tive muito contato. Para ser bem sincera, antes da minha transição eu não sabia direito nem o que era trans. Eu achava que uma travesti ou uma mulher trans era um gay que se vestia de mulher. E ao mesmo tempo eu me sentia muito culpada de sentir que era quem eu sou.
– Além do medo em perder os amigos, você já se percebeu transfóbica?
Já fui transfóbica, principalmente quando não tinha transicionado.
– Tudo bem falar novamente sobre a questão da transfobia internalizada?
Tudo bem, até porque quem nunca deu close errado nessa vida, né? (risos). Quando eu achava que era um menino gay, falava: “Olha, que ridículo esses caras se vestindo de mulher! Nunca vão ser mulheres”. Ao mesmo tempo eu escutava RBD com a saia da minha irmã. Quando estava na frente dos meus amigos gays, eu voltava a falar essas coisas transfóbicas. Até porque eles, a minha família e todo mundo falava exatamente aquelas coisas.
– O que fez se entender uma mulher transexual?
Tive que superar a transfobia minha mesmo. Tive a ajuda de uma amiga, que depois até me bloqueou do Facebook. Luna, se você ler isso daqui, me desbloqueia. Foi ela que fez eu me descobrir. Ela se descobriu trans e, quando eu vi que o nome dela havia mudado, eu fui perguntar… Ela contou que era uma mulher trans, que estava fazendo acompanhamento no Hospital das Clínicas… E disse: “Eu acho que tu é que nem eu”. Ela me enxergou, foi a primeira pessoa que me enxergou, entendeu? Daí comecei a procurar na internet e vi que era onde eu me identificava. Caiu a ficha: eu era uma pessoa muito escrota. Ela que tirou a Amanda para fora.
– E o que fez depois que caiu a ficha?
Comecei a procurar na internet o que fazer, o que precisava… Porque eu sempre tive essa disforia com o meu pintinho. Porque quando eu tava ficar com um homem gay, eu não me enxergava como homem. E quando cara tentava tocar no meu piru, eu me sentia a pior pessoa do mundo. E quando vi que poderia ter uma pepeca, fiquei empolgada. Uma semana depois eu fui falar com a minha mãe, e ela foi muito legal. No outro dia, a gente já jogou todas as minhas roupas fora e eu já peguei grande parte das roupas da minha irmã. Foi de uma semana para outra que eu já estava vivendo como Amanda, saindo na rua e dando a minha cara a tapa.
– Você sofre transfobia hoje?
É um assunto para vídeo. Sinceramente, fora da internet eu não sofro mais transfobia. Por exemplo: a gente está aqui sentado, conversando, tem alguém olhando para mim? Não. Tem alguém apontando o dedo para mim e dando risadinha? Não. Então, para ser sincera, se a pessoa não me conhece, eu não sofro transfobia. Os meus documentos estão todos retificados e isso facilita também. Mas já sofri no início da transição. O que a pessoa não entende é que eu já estou há 10 anos transicionando. Então, quando eu comecei, eu saía na rua e todo mundo sabia que eu era trans, ouvia piadinha, já recebi empurrão, já parei o banco só por estar ali… Quantas vezes eu já chorei, porque sou emotiva, de tudo isso? Eu transicionei com 18 anos – ou seja, já não era tão novinha – e tive a sorte de meu corpo se adaptar bem aos hormônios. Mas considero ridículo ainda hoje pessoas que estão transicionando ou que não tenham a aparência esperada pela sociedade sofrerem transfobia. Para mim, eu sou igual a uma menina trans que nem se descobriu trans.
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– Vi uma reportagem internacional que fala sobre a segunda “primeira vez” de uma mulher transexual após a CRS. Como foi para você?
Para mim, foi realmente a primeira vez. Foi um terror, porque eu estava muito nervosa. Eu tinha saído com o boy para saber se ele conseguiria identificar que a pereca era feita no hospital. E ele não identificou. Eu estava nervosa e o negócio não… Entende? Antes da cirurgia eu não conto, até porque não conseguia fazer sexo. Mesmo a pessoa não sabendo que eu tinha pênis, eu me sentia muito mal só por eu saber que tinha aquilo ali. Eu não me sentia completa. E pode botar que eu não me sentia completa, porque muita gente acha que errado a gente falar isso. Mas eu não era completa.
– É que, com essa frase, tirando o âmbito pessoal, parece que uma mulher trans que não passou pela CRS não é mulher completa, entende?
Eu sei que uma pessoa que é mulher trans e que está em transição ou que não transicionou também é mulher. Mas no início da minha transição eu achava que não. Porque eu queria ter uma pepeca e achava que se a pessoa não quisesse, ela não era mulher também. E é isso que muita gente acha. E uma coisa que eu aprendi é me colocar no lugar da outra pessoa. Não é porque eu quero uma coisa, que a outra pessoa também vai querer. E não é porque ela não quer, que ela não vai ser a mesma coisa que eu.
– Essa pergunta não é o que parece ser, mas é importante fazer para desmistificar a questão da redesignação sexual. Sabendo que existem mulheres com pênis, se você pudesse voltar atrás, você faria a CRS hoje em dia?
Sim, porque eu não fiz a cirurgia para ser mulher. Não foi a cirurgia que me fez mulher, eu já era uma. Eu fiz a cirurgia porque aquilo ali me fazia mal. E acho que se eu não tivesse feito, eu não estaria mais viva, eu preferiria morrer. Quando eu fui para a mesa de cirurgia eu falei: “Se eu morrer vou morrer feliz, porque vou morrer completa”. Para mim, era algo que faltava.
– Mandy, achei importante a gente falar sobre a transfobia internalizada. Porque muitas vezes a gente fala sobre ela como se fosse algo que só o OUTRO precisa desconstruir…
É, a gente está se descobrindo, aprendendo… Até hoje eu tenho muita coisa para arrumar, algum close errado que eu vou construindo. Ninguém nasce desconstruído, a gente vai se desconstruindo com o tempo. É por isso que eu não fico tão chateada quando vejo um adolescente de 13, 14 anos me xingando, porque na idade deles eu fazia a mesma coisa. E tem gente que fala “mas com tanta informação na internet…”. Cara, ninguém acorda um belo dia e diz: “vou pesquisar sobre transexualidade”. Se o assunto não bater na sua cara, se não tiver ninguém na sua vida que seja trans, você não vai procurar o assunto. É por isso que queremos provocar a discussão e estar no Youtube, na livraria, em todos os lugares.
– Para finalizar, gostaria de fazer uma pergunta para o Luc (o namorado da Mandy, que estava acompanhando a entrevista). Como é ser namorado de uma youtuber trans e famosa?
É normal. Acho engraçado quando as pessoas abordam ela. Mas eu a vejo como qualquer outra pessoa. Sobre cis ou trans, isso realmente não faz diferença para mim.