Kimberly e algumas de suas comunidades do Orkut mais famosas
Por Neto Lucon
Se você acessava a internet nos anos 2000, tinha perfil no extinto Orkut (2004-2014) e procurava assuntos voltados para a população trans, certamente já se deparou com uma, duas, três ou várias comunidades da Kimberly Luciana Dias, blogueira, ativista, recepcionista e artista performática.
Dentre as comunidades mais badaladas criadas por ela estavam “Travestis e Transexuais Brasileiras”, “Mundo T-Girl”, “Tenho uma amiga travesti”, “Travesti é pra Casar”. Todas consideradas referências, pioneiras no ativismo virtual e promovedoras de debates nos Fóruns. Ela também homenageava ícones como Claudia Wonder, Thelma Lipp e Camilla de Castro.
Com o fim do Orkut, Kimberly migrou duas comunidades para o Facebook, o Mundo T-Girl e Travestis e Transexuais Brasileiras”, além de criar um blog de notícias (clique aqui) e um canal no Youtube, Desci Pra Arrasar. Nele, ela fala tanto sobre assuntos volvendo a população trans e travesti, quanto faz resenha de produtos e dá seus pitacos sobre o mundo das misses.
Em entrevista exclusiva ao NLUCON, a blogueira fala sobre o pioneirismo no ativismo virtual, desafios, vida e o orgulho de ser uma travesti. Ela pede que venha em outras reencarnações como travesti, mas que seja poupada das transfobias. Ah! Você pode assistir a entrevista em vídeo ou em texto.
Confira o bate-papo abaixo:
– Antes de começarmos nossa entrevista, você disse que não se considera militante. Por qual motivo?
As pessoas me veem como militante, mas eu não gosto de me considerar porque sinto que tenho falhas e não me doo o suficiente. Eu me vejo como uma voluntária na causa LGBT e na causa TT.
– Apesar de não se considerar militante, há muito tempo você contribui na luta pelos direitos da população trans e travesti. Como foi que decidiu abraçar a causa?
Essa veia de militância, de luta e de garra vem desde a minha infância. Na minha cidade no interior de São Paulo, Fernandópolis, com uns seis anos eu já participava de projetos e reuniões em prol da ecologia. A gente saía nas ruas reivindicando qualidade de vida para os animais do zoológico, que passavam fome e eram maltratados. Nós conseguimos locomover o IBAMA até a nossa cidade. Eu tinha até um jornal em que eu aparecia com uma plaquinha. Era bem criancinha e tinha muito orgulho desse jornal. Desde ali eu já tinha essa veia de ir para a rua e gritar. Se eu tivesse vivido na época dura da ditadura, talvez eu tivesse sido morta, porque sempre tive isso dentro de mim.
– Hoje, falam muito da militância virtual do Facebook. Mas você já tinha comunidades desde a época do Orkut. Como foi esse período?
Pois é! Eu te conheci através da sua comunidade (Respeito às travestis e trans) e eu tinha algumas comunidades no Orkut. Eu fazia tudo o que era comunidade do segmento T, tinha um vício de criar comunidade. Eram muitas comunidades…
– (risos) E todas elas contavam com muita gente…
Sim, eram referências. Se a pessoa queria saber de assuntos envolvendo travestilidade e transexualidade naquele período eram nessas comunidades, nas minhas e na sua, que essa população encontrava orientação. Havia os fóruns em que as pessoas trocavam experiências e divulgavam informações. Também havia comunidades das nossas divas Claudia Wonder, Nana Voguel, Andréia de Maio, Camilla de Castro, que homenageavam elas.
– Lembro que uma das comunidades mais badaladas desde a época do Orkut é o Mundo T-Girl, que está no Facebook e que você também criou um blog de notícias. Como foi essa transferência?
Quando o Orkut acabou, eu fiquei até um pouco deprimida. Então, decidi migrar algumas comunidades que eram conceituadas para o Facebook para dar continuidade. Então tem o Mundo T-Girl e também “Travestis e Transexuais Brasileiras”, que eu amo muito essa página. Ela já caiu algumas vezes do Facebook, porque as pessoas denunciam. E você fica até com medo de investir o seu tempo em uma página que não tem segurança. Alegam que tem pornografia, mas se vocês entrarem lá vão ver que é todo um trabalho social. Não tem pornografia. Mas as pessoas, não sei se são as transfóbicas ou as pessoas do contra, ficam o dia inteiro denunciando as postagens e as publicações.
– Sei o que é isso. O NLUCON só porque fala sobre a população trans e travesti já é por si já é considerado conteúdo adulto…
Isso eu também sofria na época do Orkut. Eles marcavam que era conteúdo impróprio, maiores para 18 anos e que não era conteúdo familiar. Ou seja, eles veem o assunto da transexualidade e da travestilidade como não adequado.
– O que a gente precisa falar ainda hoje sobre as travestis para essa sociedade transfóbica?
Acho que a sociedade ainda tem que aprender que não somos marginais, que não somos vulgares e que ela nos deve muito. Somos seres humanos, pessoas como qualquer outra, com acertos e erros. Também deve saber que ser travesti é a nossa identidade de gênero.
Veja algumas das comunidades do Orkut:
– Como você se entendeu travesti?
No início eu não tinha muita noção, não era muito politizada e a sociedade me pregava como homossexual. Até cheguei a me considerar homossexual. Mas quando cheguei na militância, interagindo com outras militantes, eu fui aprendendo e me reconhecendo como travesti. E sou de uma geração que a identidade de gênero travesti era muito forte. Era a travesti que estava nos jornais, na televisão, então através da minha geração eu me considerei e me considera travesti. Eu não tenho vergonha nenhuma disso.
– Mais que não ter vergonha, você tem orgulho de ser travesti?
Eu tenho orgulho de ser travesti, porque ser travesti é luta, é resistência, é uma bandeira e uma história. Tirando o preconceito que existe, podem me mandar em várias encarnações como travesti porque eu amo ser travesti. Eu não saberia ser uma mulher cis ou um homem cis hétero.
– O que lembra da sua infância?
Eu queria ter Barbie, queria ter brinquedos considerados de menina, mas eu tinha essas limitações porque até então eu era vista como um menininho. Os meus pais não me davam esse tipo de presente. Mas eu curti a minha infância da melhor maneira possível, brinquei até o último instante em que eu me vi como criança. Eu tinha vontade de brincar, ia lá e brincava. Não sou frustrada em relação à minha infância.
– Mas você conseguia levar a infância tranquilamente se não conseguia ganhar aquilo que gostaria?
Os meus brinquedos de “menina” eu recolhia do lixo. Pegava as bonecas que eram jogadas no lixo, que não tinham pernas, cabeças, braços e eram com elas que eu desfrutava e me realizava. Quando não tinha essas bonecas, eu pegava a caixa das bonecas que as meninas ganhavam de presente. Eu recolhia do lixo, recortava e brincava com aquele papel duro. No interior de São Paulo também tem muita boneca de milho e eu brinquei muito com boneca de milho. Uma tinha o cabelo vermelhinho outras eram loiras e elas eram as minhas divas nessa fase.
– Como foi dizer para a família que é uma travesti?
De primeiro momento a minha família não aceitou. O meu pai, que teve uma educação machista, por incrível que pareça, foi a pessoa da minha família que sempre me aceitou. Eu nunca vi o meu pai questionar a minha travestilidade. Lembro que quando fiz a rinoplastia, que ia me operar e resposta dele foi: “Por que ela vai fazer isso? Por que ela não faz a pepeca logo?”. Na cabeça dele tinha ser até na parte íntima também. Mas a família foi aceitando com o tempo. Ainda hoje alguns não me chamam por Kimberly e é uma das minhas limitações. Por mais que grite, brigue e lute para o respeito ao nome social, eu não consigo cobrar deles isso. É um bloqueio que eu ainda tenho. Mas sei que apesar disso eles me amam.
– Você tem uma veia artística, faz performances musicais e também faz manifestações artísticas em Paradas. Como foi que se descobriu artista?
Desde a infância a gente tem sonho de ser atriz, cantora… Mas na vida adulta eu vi que não tenho voz para cantar e que não tenho talento para atuar. Então, como sempre assisti ao Silvio Santos, os shows de calouros com as travestis e transexuais, aquilo me fascinada. Eu queria ser aquilo também e procurei fazer. Nessa área eu me dou muito bem e me realizo. Nas minhas performances, procuro trazer uma visão social, de luta e de empoderamento.
Em performance no SP Transvisão
Kimberly em concurso de miss
– Como foi que chegou aos concursos de Miss? Você chegou a vencer, né?
Eu caí de paraquedas no mundo miss e também reconheço as limitações que eu tinha na época. Eu nunca tive o padrão de miss para ser miss daquela época. Sou de uma geração que para ser miss você tinha que ter corpão, tinha que ter silicone, tinha que ter curvas. E neste período eu não tinha nem silicone industrial no corpo. Se fosse hoje, que não há mais essas exigências, eu estaria apta. Mas na época era uma ousadia, tanto que sofria preconceito no camarim das outras candidatas. Eu tentava, tentava, tentava., mas elas diziam que eu era uma gayrota.
– Elas te chamavam de gayrota por você não ter silicone?
Eu tinha próteses de silicone, eu só não tinha o silicone industrial. Então elas me tratavam como gayrota.
– Foi por conta disso que você chegou aplicar o silicone industrial?
Foi por conta disso. A Nana Voguel (uma das maiores organizadoras de concursos de miss) chegou em mim um dia e disse: “Sabe porque você não se classifica nos concursos? É porque você não é bombada”. Daí eu me bombei e participei de dois concursos. Um eu obtive uma vitória e o outro o vice-lugar, que foi o Miss Mundo versão Latina. Tive sorte que não tive nenhum problema com o silicone até agora.
– Recentemente, o Supremo Tribunal Federal aprovou que a população trans e travesti faça a retificação dos documentos diretamente no cartório. Antes disso, era necessário entrar com uma ação judicial, provar que é uma pessoa trans por meio de laudos e aguardar a decisão do juiz. Você chegou a passar por esse processo?
Para muita gente eu era uma das pessoas que já deveriam estar com a documentação retificada, porque várias pessoas de gerações depois que a minha já estão. Mas eu, como grito de resistência, resolvi não me submeter a essa burocracia toda até essa decisão do STF. Acho uma falta de respeito ter que dar laudos, pedir que pessoas façam cartas dizendo que eu sou quem eu sou. Então por uma questão de resistência me neguei a passar por isso. Vivo como travesti há anos e não tenho que provar que sou uma.
– O que achou da decisão do STF?
Eu pensei que fosse morrer e não fosse ver isso acontecer. Foi um sonho realizado. As informações ainda estão vagas sobre como será em todo o Brasil, pois tem lugares que fazem e outros não. Mas sei que vai começar uma nova fase de vida para a população TT nesse país. Era isso que a nossa comunidade sempre lutou e sempre necessitou. Então, depois de ter sonhado e lutado, o meu papel social como cidadã, será fazer a minha retificação ao lado das minhas irmãs travestis no cartório.
Na Parada do Orgulho LGBT de SP, em 2014, Kimbely reivindicava reconhecimento do nome
– Bem, qual é o conselho que você diria para a nova geração de travestis?
Queiram ou não elas vão aprender sozinhas a realidade do que tem no momento. Elas vão aprender e ganhar experiência de vida com a transfobia, com a rejeição, com os direitos ceifados. O conselho é que elas sejam elas mesmas, que se empoderem mais, que fiquem a par dos assuntos sociais, pois temos que ter o mínimo de politização.