A cientista social Leona Wolf, que é uma mulher trans, participou recentemente de uma importante e necessária entrevista exclusiva do canal NLUCON para falar sobre a conjuntura política atual brasileira e as opressões que ainda persistem no país.
De maneira direta, a pesquisadora refletiu sobre a eleição de Jair Bolsonaro (PLS), os desafios que a população LGBT deve enfrentar nos próximos quatro anos e a maneira de se fazer política se apropriando de preconceito ao longo dos anos.
Confira o bate-papo em texto e/ou assista em vídeo ao final:
– Após a eleição de Bolsonaro, muita gente está com receio de que haja retrocessos e que a violência aumente. O que a gente pode pensar sobre esse momento?
A gente tem uma onda de violência grande, mas ela não cresceu agora. A gente está num crescimento exponencial ano após ano. O principal foco é entender que não é o Bolsonaro que vai gerar o preconceito, essa onda de preconceito já gerou o Bolsonaro. Sendo assim, o principal combate que a gente deve fazer é em relação a essa onda de preconceito. Porque não acho que a gente tem uma ruptura do governo Temer com o governo Bolsonaro. Eles estão dentro de um mesmo projeto nacional: entreguista, anti-classes populares e que precisou de uma substância fascista que pudesse garantir a popularidade. Essa substância mobiliza medos, preconceitos, coisas que estão estruturais na sociedade e que nós nunca conseguimos lidar com isso.
– Você acredita que não conseguimos lidar ainda com as questões de grupos historicamente marginalizados?
Nós viemos de uma realidade em que as travestis eram proibidas de sair nas ruas e que eram presas. Rogéria falava das proibições que enfrenta ao sair com vestes atribuídas ao feminino nas ruas. Nos anos 80, a polícia chegou a prender travestis dentro de uma justificativa de que estava prevenindo a aids. Então a gente vem de uma realidade dura, de assassinatos, de prisões e de perseguições e que de fato nunca conseguimos superar. O que a gente tem que pensar é que isso não foi superado nem nos governos das esquerdas. A gente conseguiu, por exemplo, fazer com que injuria racial fosse crime, mas o racismo continuou dentro das pessoas. A transfobia não é diferente.
– De alguma maneira, evoluímos nestas questões? Ou foi só uma sensação de que as demandas das populações discriminadas estavam sendo melhores acolhidas?
Nos anos 90 e na entrada dos anos 2000 a gente teve a impressão que estava indo para outro caminho. Mas a gente tem que pensar o seguinte: todo o furor anti-esquerda e anti-comunismo tinha sido sufocado com a queda do leste-europeu. Até então o que sustentava um discurso anti-esquerda era o terror do comunismo, mas o que se fala a partir de 89 é que o comunismo fracassou e que não existe mais. No caso do Brasil, estamos construindo uma democracia, então o peso de tudo isso levou uma hegemonia que estava buscando uma convivência dentro da pluralidade. Mas até que ponto conseguimos tocar todas as pessoas? Até que ponto as pessoas que falam com saudosismo dos anos 80, elas de fato mudaram? Até que ponto elas simplesmente esconderam o seu discurso? Ou que não falam porque é errado? Até que ponto a gente não cultivou o preconceito de ser preconceituoso? Embora algum avanço a gente teve.
– As fake news ganharam as eleições no último ano. Por que há esse apelo?
Tem coisas que começam a passar despercebidas, como a “terra plana”. Tem gente que começa a soltar isso: “terra plana”, “terra plana”. Parece uma piada, porque parece ridículo ainda hoje acreditar que a terra é plana. Mas na verdade há uma lógica dessas pessoas: você joga uma ideia ridícula e aguarda a difusão dela. Você pode pensar que se há pessoas capazes de acreditar em terra plana, é possível encontrar pessoas que acreditam em qualquer coisa. E daí a pessoa joga em cima disso. Eu estou falando de técnicas fascistas. Se você olhar no nazismo, o preconceito contra judeu na Alemanha era uma coisa velha. O que o Hitler fez? Ele usou isso. Tanto que quem foi pro campo de concentração foram os judeus, homossexuais, ciganos e comunistas, sendo que comunista na Alemanha era qualquer esquerda. Daí eu penso no Brasil: quem é odiado? É o negro que mora na periferia. São as pessoas LGBT. Índio, dá para falar de política anti-índio? Na verdade, eles querem a terra dos índios e no imaginário da população índio nem existe.
– Bolsonaro utilizou de muitas fake news… Acha que elas continuarão?
Agora ele vai combater a ideologia de gênero, que nem existe. Ele vai excludente de ilicitude para os policiais que já tem… É interessante ver como a fake news do kit gay também surgiu. A escola sem homofobia seria importante para as pessoas, porque ocorreria no âmbito nacional. dentro do âmbito educacional e com uma educação não-homofóbica e não-excludente. Ela lidaria com a discriminação. Mas eles conseguiram transformar na Escola Sem Homofobia como um projeto de transformar crianças em LGBT, de mudar a orientação sexual e a identidade sexual das crianças. Isso não faz sentido nenhum, é uma grande mentira, mas é o que eles propagandeiam.
– Sobre ideologia de gênero, sempre dizem que a militância LGBT e sobretudo trans quer transformar crianças em aquilo que não são – o que sabemos que não existe sequer a intenção ou a discussão nos grupos de militância trans…
Vi que está em documentos oficiais e projetos de leis que a questão de gênero foi uma invenção da Judith Butler. É louco porque se a gente for pegar historicamente a questão da transgeneridade, ela pode ser retomada até a antiguidade remota. Mas a gente tem que pensar que há parlamentares que acreditam nisso. E quando eles soltam em seu whatzapp essas questões há pessoas que também acreditam nisso, o que é muito preocupante.
– Observo que muitos dessas fake news baseadas no preconceito vem acompanhados da justificativa de que estão preocupados com a corrupção ou com a família tradicional brasileira. O que podemos pensar sobre isso?
O discurso sobre a família e interessante, porque eles não estão preocupados em defender as famílias reais. Ninguém se preocupa com a família da mulher negra, que o homem engravidou, desapareceu, pois fala que o filho não é dele. E que essa criança precisa de creche, escola, posto de saúde, e que essa mãe vai se revirar do avesso para colocar comida na boca dela e que tem que deixar com a mãe de 70 anos. Isso para eles não é família, mas isso corresponde a grande parte das famílias no Brasil. Para eles, famílias é o núcleo em que a mulher serve ao marido e aos filhos, sempre feliz. E que os filhos são obedientes e subservientes, sempre felizes. Se o filho for gay, ele vira hétero, pois vai permanecer dentro do armário, feliz. E se alguém sair dessas normas será punida fisicamente… É uma família ancorada no medo e na agressão. Lutar pela família poderia ser lutar para que ninguém fosse expulsa de casa por ser travesti, que ele não apanhasse por ser gay. Ainda acham que há um único modelo de família, que somente esse modelo deveria existir, mas que por alguma conspiração da esquerda, isso mudou. Mas na verdade ninguém da esquerda está discutindo isso. A gente está discutindo inclusão, acesso, a bens e a direitos sociais.
– O que leva a gente ter pessoas LGBT votarem e apoiarem esses políticos que disseminam frases contra a própria comunidade LGBT?
Temos que tomar cuidado quando a gente lida com a questão identitária, porque nem sempre a identidade LGBT é dominante. As pessoas não são uma identidade apenas. Eu não sou só uma pessoa trans. Sou também negra, sou uma classe baixa e isso tudo tem um peso. De repente, a pessoa pesa os privilégios além dos problemas que ela pode ter. Às vezes interessa manter os status de uma classe elevada. A questão de classe pesa muito nessa tomada de posição. Não vou falar que é só uma pessoa rica, porque é uma ideia que vai se infiltrando. De repente o cara que é um proprietário de um salão de cabeleireiro na esquina se sinta um grande empresário, porque ele é empreendedor, porque o que ele conseguiu foi com seu emprego, que ele quer que “baixa os impostos porque está cansado de sustentar pessoas com o Bolsa família”.
Mas precisamos entender também que não foi a maioria da população LGBT que está com ele, nem a maioria dos negros, nem a maioria dos Brasileiros. Se você somar as abstenções e nos votos do adversário, a gente vai ver que ele foi eleito em condições muito semelhantes a eleição de Dilma Rousseff, com uma minoria da população brasileira dando apoio a ele. E também faz pensar a crise que a gente tem no sistema político institucional que faz com as pessoas não votem. Se os representantes são os representantes do povo e a gente tem o nível de abstenção no Brasil que cresce acima de 30%, daqui a pouco essa representação vai ser dada por metade da população. E a gente entende que essa metade engajada são os mais radicais: os que compraram o discurso de uma direita radical e as pessoas que tendencionam para uma esquerda mais radical.
É possível pensar em retrocesso como a ditadura no Brasil?
Não tem como repetir a mesma história. Você pode voltar com uma onda de racismo terrível agora, mas o negro já tem a cabeça erguida. Você pode voltar com uma onda homofóbica forte, mas os gays aprenderam a sair do armário e a conquistar espaços públicos. O confronto se dá dentro de outro terreno. Tanto que houve resistência e a resistência não foi pequena. A gente não pode esquecer que aumentamos a representação nossa no Congresso, em relação ao negro, a mulher e a LGBT. Pela primeira vez temos deputadas travestis eleitas e isso é um peso.
– Você mencionou a Rogéria e eu lembro que ela dizia que enfrentava os LGBTfóbicos como maneira de defesa. O que a gente pode pensar para se proteger com esse governo?
Um: não é para ninguém abaixar a cabeça. Dois: não precisa de um plano de fuga de todas as redes sociais. Três: é preciso se organizar nesse momento e é preciso estar junto. Vamos juntar negros, mulheres, LGBT, porque na verdade é uma questão de estar organizado para fazer frente em investidas contra direitos. Essas investidas não vão vir num primeiro momento numa base ditatorial. A gente ainda está regido por uma Constituição que dá liberdade de reunião, de expressão, de pensamento e crença, e a gente tem que usar isso ao nosso favor. Não é crime você se organizar para fazer uma assembleia pública. Não é um discurso de posse dizendo que vai acabar com o ativismo que por decreto baixa um AI-5 no país. A gente está num período de resistência, não de se esconder. E um período de resistência democrática, o que é outra configuração. Em 64, o poder foi destituído e transferido aos generais. Hoje, elegeram um capitão democraticamente. Podemos ter problemas mais para frente, mas a gente precisa lidar com a situação presente. A gente está dentro de uma disputa de narrativa e poder. Só que se a gente não ganha a disputa da narrativa a gente é massacrado pelo poder.
Assista ao vídeo: