Dih Isidoro, Theo Cavalcanti, Theo Dirk, Pedro Henrique Malheiros, Theo Fish, Gab Meinberg, Guilherme Maia, e Benício Teixeira (sentado está Kaio de Lucca).
Era para ser apenas mais uma foto de amigos se divertindo em um churrasco na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Porém o clique marcado por sorrisos, abraços e corpos trans viralizou ao ser publicado nas redes sociais. E num mundo competitivo e cheio de transfobia tornou-se exemplo de afeto, união e força a todos da comunidade LGBT e simpatizantes.
Na foto aparecem nove homens trans – Theo Fish, Theo Dirk, Theo Cavalcanti, Benício Teixeira, Kaio de Lucca, Pedro Henrique Malheiros, Dih Isidoro, Gab Meinberg e Guilherme Maia. Conhecendo-se em maio de 2018, todos já se consideram melhores amigos e até já se abrigaram em momentos de dificuldade. No grupo ainda há Gabriel Oliveira e Pedro Magalhães, que são de São Paulo.
Algo marcante é que todos possuem belezas diferentes, corpos plurais, passam por momentos distintos na luta pela identidade e fases distintas em suas vidas. Da característica em comum de serem homens trans, eles passaram a se apoiar incondicionalmente nas diferenças e desafios do cotidiano. O contato é feito por meio de um grupo no WhatsApp e também por meio dos eventos que realizam e que chamam de EnconTrans.
“Eles são para mim como irmãos. Aliás, eles SÃO meus irmãos. Foi incrível a nossa conexão desde o início que o grupo foi criado. Compartilhamos vivências e evoluções. Nós evoluímos juntos, aprendemos juntos e eu não quero que nos separemos mais, porque esses meninos são a minha segunda família. E eu não sei o que seria de mim sem eles, sem seus apoios. Sou eternamente grato a eles e os amo demais”, afirmou Theo Dirk ao NLUCON.
LEMA É TRANSBORDAMOS AMOR
A ideia de formar um grupo surgiu por meio de Gabriel Meiberg, de 24 anos. Ele sentia a ausência de contato com outros homens trans pessoalmente e acreditava na contribuição que todos teriam se trocassem experiências. Gab conheceu Theo Fish no endocrinologista e Benício Teixeira por intermédio de uma amiga. Logo criou um grupo no WhatsApp com os três e cada um acrescentou outros homens trans que conheciam. A iniciativa tornou-se transformadora.
Benício Teixeira, assessor de condomínios de 28 anos afirma que logo nas primeiras conversas começou a perceber e sentir afinidade, proximidade e entendimento – o que não acontecia com muitas amizades cisgêneras que tinha. “Quando eu conversava com as pessoas cis, elas não entendiam direito as nossas necessidades. A gente falava sobre respeito ao nome social, mas muitas não tinham empatia e continuavam chamando pelo nome feminino e tentando justificar. Isso não acontecia com eles, pois eles sabiam que o nome é importante”, exemplifica.
O estudante de biologia Theo Cavalcanti foi um dos amigos que foram adicionados posteriormente ao grupo. Ele conta que a amizade se estreitou a partir do momento em que eles se conheceram pessoalmente e tornaram do diálogo uma prática. “Depois disso a gente não se desgrudou mais”, diz ele, que frisa que os assuntos do grupo não se limitam às questões trans. “A gente fala de tudo. Desabafos, brincadeiras, falamos de disforia, mas também de faculdade, relacionamento”, pontua.
“A gente acabou criando uma ligação muito forte, pois nos ajudamos diariamente. Às vezes estou estressado com alguma coisa e a gente troca. Sempre tem alguém para ajudar, para conversar, para fazer palhaçada. O grupo é essencial em minha vida. Criamos uma relação de irmãos mesmo. A gente diz que é irmão em T”, diz Benício, referindo-se à testosterona.
Eles também trocam experiências em relação a pesquisas de cirurgiões, endócrinos, resultados e feitos. “Acho importante falar que a hormonioterapia deve ser feita com acompanhamento médico. Testosterona não é suco para ser tomada assim, tem que fazer exames, é perigoso e pode desencadear problemas. O SUS oferece atendimento, basta procurar e se informar onde tem”, diz Theo. Benício conta que estuda realizar a cirurgia no peitoral e que Gabriel tem ajudado a procurar os melhores profissionais. “Já nos livramos de clínicas esquisitas”, solta.
Gabriel revela que o lema do grupo é “transbordamos amor” e que eles se ajudam e se apoiam em diversos momentos. “Comigo eles me ajudaram muito em relação à autoestima e confiança. Me ajudaram no pós-operatório da minha mastectomia, vindo na minha casa me ajudar a fazer comida, passear com o cachorro. Me visitaram no hospital, foram em consulta de revisão comigo. Fora que sempre que bate alguma nóia, eles sempre estão disponíveis para conversar a hora que for”.
SER TRANS É SER
Gabriel revelou ao mundo que é homem trans há 1 ano e 2 meses, basicamente o mesmo período em que iniciou a hormonioterapia. Ele diz que a questão do gênero “martelou” em sua cabeça com o nome “transgênero” por cinco anos. Mas que naquele período ele tinha muito medo. Medo do que o que os outros iam pensar, de aceitar que era diferente, de não ter coragem suficiente e de ficar sozinho.
Gabriel, Benício e Theo Cavalcanti
O start ocorreu quando foi ao velório da avó e a viu em um caixão. “Pensei que se eu morresse hoje, eu iria estar em uma pessoa que nunca fui eu. E que aquela seria a pessoa que iriam lembrar”. E também ao descobrir o conceito de empreendedorismo. “Percebi que podemos, sim, ser agentes de mudança no mundo, então porque não empreender na própria vida”. Ah! “A psicóloga também auxiliou no momento”, lembra.
Segundo Gabriel, ser homem trans mudou muita coisa em sua vida – e isso não significa apenas externamente, mas em sua personalidade. “Eu me sentia uma pessoa muito feia, inseguro, me travava muito para tudo. Era muito tímido, não tirava foto. Hoje em dia eu até namoro (risos)!”, diz.
Ele afirma que em seu cotidiano sente mais a transfobia institucional e admite que foi muito privilegiado com familiares e amigos, que o acolheram com afeto – principalmente quando conheceu os amigos homens trans, que segundo ele deram a sensação de pertencimento. Hoje, Gabriel diz que o amor – inclusive e principalmente o próprio – muda tudo. “Ser trans para mim foi simplesmente SER”.
THEO E SUA FAMÍLIA ME ACOLHERAM
Antes de entrar no grupo, Benício estava em um relacionamento classificado por ele como abusivo. Ele conta que era agredido e vítima de transfobia pela namorada. Foram os amigos que o ajudaram a enxergar que estava em uma relação tóxica e que precisava sair dela. Benício diz que aceitava a situação porque não tinha bom relacionamento com a família, que não lidou bem com sua transição, e achava que a então namorada era tudo o que tinha.
O jovem conta que desde sempre percebeu que se identificava com o gênero masculino. Porém viveu durante muitos anos “um teatro, fingindo ser outra pessoa”, o que fez ter e desenvolver a depressão. A descoberta de que era um homem trans ocorreu em 2016, quando assistiu a série Liberdade de Gênero, da GNT. “Tudo se encaixava”, conta ele, que em dezembro de 2017 iniciou o tratamento hormonal. O contato com a família, todavia, se tornou cada vez mais complicado e ele passou a morar com a namorada.
“Até que ocorreu a agressão da minha ex”, lembra. “Eu estava machucado fisicamente, emocionalmente, com depressão e tive que sair de lá. Foi o Theo (Cavalcanti, do grupo de amigos) que me acolheu dentro de sua casa e a família dele me ajudou a superar diversos obstáculos”.
Benício diz que a família do amigo foi importante neste ano ao lhe dar, mais que um lar, afeto. “Eu me sentia muito sozinho no mundo, porque minha família não queria saber muito de mim, mas eu consegui ver que sou amado por muitos amigos verdadeiros pelo que eu sou, sem julgamentos. Tenho uma trajetória de vida pesada, então acho que faltava amor de mãe, que agora eu tenho com a mãe do Theo. Não tenho mais nem depressão. Agradeço muito a ele”.
Benício passou a morar com Theo Cavalcanti
Apesar das várias marcas que recebeu ao longo do processo, Benício afirma que só ganhou ao dizer ao mundo que é homem trans. “Acabei enxergando que tinha muitas pessoas que estavam do meu lado, mas que não eram minhas amigas de verdade. Elas davam tapinhas nas costas, mas se afastaram, pararam de falar comigo ou falaram coisas ofensivas. Hoje, além de ser muito feliz com quem eu sou, pude reconhecer quem estava do meu lado e quem queria realmente me ver bem”, reflete.
MÃE APOIA O GRUPO
Theo conta que foi marcante o dia em que Benício foi agredido, sobretudo porque ele pôde ajudá-lo. O jovem diz que foi bem tranquilo o acolher dentro de sua casa, uma vez que sua família estava acostumada com um número grande de pessoas morando no espaço e que havia um quarto vago – devido ao falecimento da bisavó e avó. Todos o receberam de braços abertos e convivem muito bem. “Mês passado a gente conseguiu ajeitar e deixar mais ou menos com a nossa cara”.
Segundo Theo, a família sempre o respeitou, ainda que seu maior desafio tenha sido conquistar a aceitação da mãe. Ela dizia não entender o que era um homem trans, mas se mostrou disposta a pesquisar. “Coloquei ela no grupo Mães Pela Diversidade e a cabeça dela abriu. O medo dela era por causa da minha bisavó e da minha vó, que poderiam não entender. Mas eu contei o que estava rolando, usando o exemplo do Ivan (Carol Duarte) na novela A Força do Querer. A minha vó disse que eu tinha que ser feliz e que ela queria isso. Nunca vou esquecer. Minha mãe só chorava e eu também. Dois dias depois ela faleceu. Acho que foi a penúltima missão dela me amar e me entender como eu sou. A última foi passar o Dia das Mães com a gente”, lembra.
O universitário declara que desde da infância e adolescência se questionava por qual motivo não tinha sido designado menino, mas sem conhecer a possibilidade de ser homem trans acabou suprimindo as questões com o tempo. Em 2016, quando cortou o cabelo bem curtinho, todas as reflexões sobre a identidade de gênero voltaram. Ele assistiu aos vídeos do youtuber trans Ariel Modara, conversou com Bernardo Enoch e foi até uma psicóloga. Foram cinco meses de terapia até ele se entender de fato e iniciar a hormonioterapia.
Theo conta que dizer ao mundo que é homem trans foi libertador. “Eu era muito infeliz e não entendia o motivo. Não gostava de mim. Hoje eu me amo demais, me olho no espelho e penso: ‘Meu Deus, como eu sou maravilhoso’”. Theo realiza a hormonioterapia com acompanhamento médico há um ano e um mês e se programa para a cirurgia no peitoral. “Talvez depois eu faça a histerectomia por causa de câncer. Os dois lados da minha família tiveram”, explica.
Cercado de amigos, família e namorada, o jovem declara que é uma pessoa muito mais feliz. Vale dizer que a mãe Tania Souza chegou a comentar na foto icônica que publicamos no Facebook do NLUCON. “Orgulho define o que sinto por esses meus filhos de coração. Theo Cavalcante me deu o enorme prazer de conhecer esses seus amigos maravilhosos! Gratidão eterna, meu filho”.
AMIGOS PARA SEMPRE
Para além dos problemas, ajudas e apoios, o grupo de amigos se encontra sempre, seja para comemorar um aniversário, uma cirurgia realizada ou sem nenhum motivo. “Basta só a gente querer se ver. Muitos encontros ocorrem no Durangos, que é um barzinho em Botafogo”, diz Theo.
O churrasco das fotos ocorreu no condomínio do Guilherme. Theo destaca que no primeiro churrasco somente o Theo Fish havia passado pela cirurgia no peitoral. No segunda, Gabriel havia passado pelo procedimento. “Esperamos que tenha um terceiro operado no próximo”, diz com bom humor, ele que também sonha com a cirurgia.
Logo no primeiro churrasco, Gabriel escreveu um texto emocionante sobre como o encontro dos 11 mudou sua vida. “Eles me ajudaram a encontrar o meu lugar no mundo. Que ser trans é fazer parte de uma comunidade no sentido mais puro da palavra. Ser trans é complicado, doído, demorado, quase que uma eterna espera, mas também é transbordar amor. Obrigado por serem a rede que só vocês poderiam ser. Amo vocês transões”.
Theo Cavalcanti afirma que todos os 10 amigos são seus irmãos que a vida lhe deu e diz que consegue prever durante muitos anos todos muito unidos. “Eu amo demais esses meninos. É uma amizade que vai perdurar, sim. Isso é fato”, declara. “Já terminamos a entrevista? Agora vou aplicar a T (a injeção de testosterona) no Benício, tá?”, finalizou.
Que esta amizade continue e inspire cada vez mais gente!
“É uma amizade que vai perdurar, isso é fato”