Por Neto Lucon
Jordhan Lessa, 50 anos, é escritor, guarda municipal do Rio de Janeiro, militante dos direitos humanos, palestrante e coach profissional sobre diversidade. Ele se tornou nacionalmente conhecido em 2014, quando lançou o livro “Eu Trans, a Alça da Bolsa – relatos de um transexual” (editora Metanoia).
Trata-se de uma obra tocante que relata sua trajetória de vida, marcada por violações, abusos e preconceitos, mas também por superações, reflexões e mensagens. Assuntos necessários e urgentes para uma sociedade que ainda não sabe lidar com a diversidade.
Jordhan conta, por exemplo, os anos que passou lutando pela sobrevivência, a situação de rua, os confrontos familiares, duas clínicas de “cura LGBT”, um “depósito de menores de idade”, violência sexual, gravidez. Até que houve a virada, aos 46 anos, ao entender finalmente o que sempre foi: um homem. Um grande alívio por se entender e o início de uma nova fase.
Desde então empresta a sua história de luta e vitória em prol do ativismo, da transformação social e da história. Ele já conduziu a tocha Olímpica no Rio de Janeiro, protagonizou campanhas sociais (bem como ressaltando a importância do nome social), e informou um gigantesco público por meio do atual trabalho como coach e palestrante. Aliás, querendo levar o debate para sua empresa, escola, universidade e outros espaços, com o discurso de quem vivenciou e entende a questão, o contato é: [email protected]
Segue abaixo, um bate-papo com ele:
– Recentemente, você publicou uma foto de criança nas redes sociais. Quando você vê essa foto, quais são as lembranças que voltam à tona?
Hoje é tranquilo me ver criança, por que me via um menininho naquela época e hoje me tornei homem, mas antes era motivo de tristeza por ver que aquele menino não podia existir, até que começou a existir aos 47 anos. Além disso me vem o sentimento que tudo poderia ter sido diferente. Não teria necessidade de passar por tudo que passei, principalmente na escola. Se nossos docentes, diretores e funcionários recebessem informação e tivessem conhecimento sobre os diversos nuances da sexualidade, ao invés de ratificar a cada geração o binarismo de gênero, tudo seria mais fácil. Até hoje continuamos sofrendo horrores pela transfobia nos espaços escolares.
– “Se você é menino, por que sua mãe colocou um brinco em você?” foi uma frase que você escutou na escola. Se o fato de ser homem sempre esteve presente, por qual motivo demorou quatro décadas para dizer ao mundo que é homem trans?
Hoje entendo que demorei tanto tempo para me reconhecer como homem trans, pelo fato de ter passado a maior parte da minha vida lutando para sobreviver. Não me lembro de ter participado de movimentos estudantis, grupos de amigos, turma de boate ou barzinhos, troca de conversas e experiências com pessoas LGBT. Enquanto o mundo passava por grandes mudanças nas décadas de 80 e 90, eu estava no meu mundo tentando não morrer e ter o que comer no dia seguinte.
Depois dessa fase, mesmo me sentindo tão diferente das outras pessoas, ingressei no serviço público em uma Instituição onde a hierarquia e o machismo são muito fortes, mas me sentia “protegido” dentro da farda, pois passava a maior parte do tempo uniformizado e me via tão masculino por fora quanto me sentia por dentro, até meu nome na tarjeta era masculino (J.Lessa), nas ruas também não passava por constrangimentos por parte da população.
Tudo ia bem até que nosso uniforme mudou de cor, deixou de ser azul escuro e passou para um bege que evidenciava mais o corpo e me deixava arrasado por ter que usá-lo. Era uma tortura e todos os constrangimentos represados por longos anos vieram à tona e me adoeceram. Nessa época (2013) conheço o João W. Nery e na palestra dele me reconheço, minha vida passou a ter outro sentido e depois de muito pesquisar sobre o assunto transexualidade, decido iniciar minha transição.
– Alguns homens trans dizem que a pior fase é a puberdade. Foi assim com você também?
Passei por tanta coisa que é difícil dizer qual a pior fase, mas acho que a adolescência, quando fui violentado sexualmente, foi a pior fase. Foi uma época que, apesar da aparência sempre ter sido muito masculina, eu era cobiçado pelos homens, que não me atraem em nada. Amava estar com as mulheres, que me achavam macho demais e nessa bagunça toda eu não conseguia me entender, não me sentia mulher, não me comportava como lésbica, parecia homem, mas não tinha pau. E despertava a luxúria masculina, até que culminou em estupro.
Todas as fases, desde a mais remota infância até os meus 46 anos, foram muito difíceis, não saber quem você é, que lugar você ocupa, não se reconhecer em ninguém, entrar em lugares lotados e se sentir sozinho, chorar das dores que são somente suas e não ter ninguém para ouvir que compreenda o que está sentindo, ver as pessoas rindo e fazendo piada de quem se parece com você e não poder fazer ou dizer nada, tudo isso torna muito mais difícil qualquer fase da vida.
– Dizer ao mundo a sua verdadeira identidade de gênero pela primeira vez doeu ou aliviou? Ou a autoaceitação acabou sendo mais complicada?
Dizer ao mundo quem realmente eu sou foi um enorme alívio, doeu somente quando falei para o meu filho, por que para ele foi muito complicado substituir a figura materna, por mais masculina que fosse, por uma figura paterna com quem ele achava que não tinha a menor intimidade. Com o tempo, ele e eu, viemos reconstruindo o nosso amor e hoje ele entende que não perdeu nada, que sempre estive aqui e que na realidade ele tem os dois em um só corpo, por que entendo que a pessoa que sofreu um estupro e o pariu foi a mesma que permitiu a existência e a liberdade do Jordhan de agora.
A auto aceitação veio depois de pesquisar e conhecer outros iguais a mim e então descobri que a minha preocupação era relacionada às mudanças e a idade. Não um conflito interno como aconteceu lá nos meus 12 anos, época que me apaixonei pela 1ª menina e achava que era uma aberração, um doente mesmo, do jeito que diziam e o CID apontava.
– O que diria aos homens trans que estão se entendendo como tal neste momento?
Para os mais novos digo que pesquisem muito, busquem a maior quantidade de informações possível, não se deixem levar pelo primeiro impulso, pois transicionar é uma atitude para a vida toda, é preciso conhecer os benefícios e as consequências, saber se estão em condições de suportar tudo que virá, pois parece que os nossos problemas se resolverão e não é assim que acontece.
O preconceito continua, os constrangimentos são ainda maiores, o abandono e o desrespeito por parte de pessoas que julgávamos nossas amigas nos magoam bastante, sem contar as implicações nas áreas da saúde e jurídica que muitos só descobrem depois que fazem suas mudanças, tanto corporais quanto nos documentos, e se veem obrigados a abrir mão de pensões, têm dificuldades para registrar imóveis e heranças entre outras questões, que quando se tem pouca idade parecem não fazer diferença, mas que na vida adulta são fundamentais.
Especialmente sobre preconceito é preciso dizer que ele continua e até aumentou, pois nos atinge de fora para dentro e por dentro, do lado, em cima, por baixo e todas as formas se tornando ainda mais cruel. Ele vem justamente daqueles que acreditamos que estariam ao nosso lado na luta contra o preconceito e a discriminação, o preconceito também vem da própria comunidade LGBT, que não reconhece as nossas identidades e tenta deslegitimar as nossas vivências e as nossas dores. Portanto cuidado, por que dói.
– Quais foram os próximos passos que você teve após se entender homem trans? O que mudou desde quando você iniciou o chamado “processo transexualizador”?
Meus passos foram esses, muita pesquisa, a busca por informação confiável e não achismos, a preparação para a primeira cirurgia, a conversa com a pessoa eternamente mais importante para mim que é meu filho e o início do processo. Em 2015, fiz a retirada das mamas, que era um sonho de infância e começo a hormonioterapia, tudo pelo particular, pois aos 46/47 anos o tempo de espera na fila do SUS era algo absurdamente impossível.
Tudo mudou para melhor na minha vida, apesar das questões que a gente acaba, mesmo não querendo, ser o primeiro disso, primeiro daquilo). Fiz todas as cirurgias que queria (mamoplastia masculinizadora e histerectomia total), retifiquei nome e gênero, ou seja, sou oficialmente Jordhan Lessa de Faria e o uso de hormônio com acompanhamento me dá a imagem que gosto de mim.
Acho importante dizer que não são as modificações corporais que nos fazem sermos quem somos, pois muitos de nós não podem, pelos mais variados motivos, se submeter às cirurgias ou retificar seus documentos e mesmo assim devem ser respeitados da maneira como se auto identificam. Nem todo homem trans sofre de disforia, alguns tem o desejo de gerar seus próprios filhos e podemos ter qualquer orientação sexual, nada disso nos faz menos homens, exatamente como ocorre com os homens cis.
– Ao longo da minha profissão, vi alguns homens trans (bem como os homens cis fazem) pisarem no machismo para reforçarem a sua identidade de gênero. Sendo militante e brigando pelos direitos humanos, como lida e trabalha com a própria masculinidade?
Reconheço que era bastante machista e só percebi isso quando mergulhei no ativismo, no meu caso, entendo que ao longo do tempo fui me endurecendo, acho que era uma maneira de me proteger, depois ingressei na GM Rio aonde o machismo é regra, mas hoje já não sou mais assim, isso me foi dito por amigos próximos.
No começo da minha transição cheguei no ápice do machismo, o corpo novo, as novas sensações que o hormônio me proporcionava, tudo isso me deu a péssima sensação de Super-Homem, o resultado foi a dissolução do meu casamento e um período sozinho de reflexões que me fez muito bem para entender que tipo de homem estava surgindo.
Depois dessa fase comecei a entender que não é por que fiz uma transição que preciso reverberar o machismo, muito pelo contrário, agora posso e devo me dar o direito de ser suave, não preciso ser machista para ser um homão da porra (risos).
Nesse entendimento percebi outra mudança que tem a ver com o que as pessoas esperam de nós, tipo aquela pergunta clássica e transfóbica “Ué você não é homem, então isso você deve fazer aquilo, você deve resolver, esse peso você deve carregar”. Enfim eu não sou machista, porém me cobram um comportamento machista e caso eu não o tenha surge a dúvida sobre minha masculinidade. O bom é que reaprendi a ser quem sou e me sinto livre e leve sem o peso do machismo.
– Assim como o saudoso Anderson Herzer, você chegou a ficar na Febem (a Fundação Casa). Poderia contextualizar um pouco e falar como foi essa experiência?
Interessante você citá-lo, “A Queda para o Alto” foi o primeiro livro que li e me reconheci ainda muito novo, lembro de detalhes do texto e da paixão dele pela atriz Nathalia do Vale, lembro também que a sensação de suicídio já era muito forte em mim, o que mais tarde tentei por três vezes e graças ao CVV – Centro de Valorização da Vida não concretizei.
Aqui no Rio de Janeiro não é FEBEM, era FUNABEM – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor – eu tenho vontade de dar gargalhadas quando escrevo o significado do acrônimo. Essa passagem é um dos capítulos do meu livro (Eu Trans – A Alça da Bolsa – Relatos de um Transexual 2014 Ed. Metanoia) e lá eu conto detalhes do que era aquele inferno que só não foi pior por que cai nas graças da chefona do lugar e namorei muuuuuito.
Posso afirmar que era um depósito de menores de idade, que até faziam trabalhos manuais e aprendiam algumas habilidades durante o dia, mas ao cair da noite, tudo era transformado em submundo e não desejo a ninguém que passe pelo o que eu passei.
– Além disso, também esteve em uma clínica que tratava as pessoas LGBT como doentes. Como foi?
Seguindo a sequência de absurdos pelos quais fui obrigado a passar pela minha família, estive em dois manicômios e exatamente por isso me dói muito ver que nos dias de hoje, em pleno século XXI, estamos ameaçados de voltar a viver esses horrores legitimados pelo Estado, não que tenham acabado e deixado de acontecer durante esses anos (vide caso da menina trans de São Gonçalo RJ) mas retroceder e colocar intramuros aqueles que só por serem “diferentes” serão tratados como doentes mentais é cruel demais e nada justifica esse retrocesso.
Eu vi, ouvi e senti coisas tão absurdas que cheguei a pensar em alguns momentos que estava realmente louco, tomei choque na cabeça, perdi o controle do meu corpo que urinava e evacuava como se não fosse meu, passei do Natal até o Ano Novo dopado, dormindo e depois dessa tortura, me davam tanta medicação que até hoje, ainda penso que não morri, por que não estava na hora.
Demorei muitos anos para me aproximar de pessoas, para sorrir de novo e somente esse ano (2017/2018) aos 50 anos, comemorei o Natal em família e me senti confortável. Acho que as marcas daqueles dias e tudo que fizeram comigo morrerão comigo, as feridas do corpo se fecharam, mas as cicatrizes são na alma.
– Depois de sofrer inúmeras violências, você entrou para a Guarda Municipal e fez história. Como surgiu a vontade de entrar para a Guarda?
Na realidade a vontade de ser guarda nunca existiu, por que eu nunca havia ouvido falar de Guarda Municipal, na época eu não morava na cidade do Rio, morava na baixada fluminense, de favor, na casa de uma família muito amiga (até hoje) que me acolheu em um dos momentos ruins que passei.
Um dia qualquer de semana eu estava virando cimento para encher uma laje junto ao dono da casa, quando alguém me disse que haveria um concurso para a GM Rio, quando terminei dali, procurei saber mais a respeito e fui para o Rio entender o que era o ofício de guarda e só então me apaixonei e decidi fazer parte da instituição.
Durante o período de provas, toda vez que eu ia ao Rio era capaz de me ver dentro do uniforme, sentir o calor do asfalto sob meus pés dentro do coturno. Me empenhei tanto que dos 22.065 inscritos sou o 5º colocado em publicação do Diário Oficial. Isso aconteceu entre 1997 e 1998 quando finalmente fui admitido em 5 de agosto e estou lá até hoje.
– Como a sua presença neste espaço transformou a profissão e seus profissionais no Rio de Janeiro? Houve debate, questionamentos e transformação de pensamento em relação às pessoas trans?
O que há desde 2014, época que lancei o livro, é uma sequência de atos isolados que à duras penas vêm alcançando os comandantes e a própria Prefeitura. O efetivo da GM Rio, atualmente está por volta de 7.500/8.000 servidores guardas e em tão pouco tempo, praticamente três anos, já participei e provoquei mudanças que fazem parte da história não só da Instituição, mas também da cidade do Rio e Janeiro e isso me deixa muito honrado por pensar que deixo um legado legítimo e digno para as próximas gerações.
Em ordem cronológica posso citar que em 2014 tive o lançamento do livro com a presença de vários colegas GM, o reconhecimento público de ser o 1º guarda trans e o apoio da Instituição através da sua Assessoria de Comunicação, que aliás agradeço publicamente a equipe de colegas e colaboradores que sempre tratou o assunto com seriedade e me ajudou muito a trazer informação sobre um assunto tão polêmico.
Em 2015 ocorreu a Transferência para o setor de Serviço Social integrando a CVS – Coordenadoria de Valorização do Servidor onde participei fazendo a inclusão das questões LGBT na criação do projeto, hoje programa – GM SEM PRECONCEITO que trata de Igualdade Racial, Violência contra Mulher e LGBTfobias – publicado em Diário Oficial. Comecei a usar, oficialmente, meu nome social na instituição, publicação em D.O e Boletim Interno
Em 2016 fui o 1º Guarda Municipal Trans a representar a Instituição nas Conferências Municipais e Estaduais e eleito delegado para a Conferência Integrada em Brasília (D.H Pessoas com Deficiência e LGBT). Fui também o 1º Guarda Trans representante do poder público carioca no revezamento da Tocha Olímpica
Já em 2017 apresentei em outros Municípios e Estados o programa GM SEM PRECONCEITO, passei a integrar a equipe da CEDS – Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da cidade do Rio de Janeiro, onde logo no 1º mês fizemos a inclusão dos meninos trans nos projetos da Coordenadoria, que anteriormente só contemplava as meninas trans e as travestis, realizamos outras ações como a 1ª Feira da Diversidade que tem como foco a empregabilidade e o Outubro da Diversidade que foi um mês inteiro de eventos e atividades LGBT por toda cidade, da zona sul à Santa Cruz e também com algumas participações da Coordenadoria em outros municípios da baixada.
Dando continuidade à área de segurança pública, fui escolhido para compor o GT LGBT da Secretaria de Segurança Pública do Estado que trabalha na formatação do aplicativo que será usado pelos agentes das forças de segurança: Polícia Civil, Polícia Militar e Guardas Municipais e tratará de cinco questões, a saber: Idoso, Criança e Adolescente, Mulheres, Igualdade racial e intolerância religiosa e LGBT com especial atenção às pessoas Ts. Fechei o ano com a continuidade para 2018 de diversas ações e reconheço o tamanho da minha responsabilidade e o “privilégio” que tenho e uso para levar àqueles que estão na gestão da cidade a realidade dos meus iguais.
– Lembra com quem foi a primeira pessoa do trabalho que contou que era homem trans?
Nunca tive essa conversa em particular com ninguém do trabalho, que eu me lembre, todos ficaram sabendo quando leram meu livro e pela mídia.
– Gostaria de saber como você lida com os possíveis machismos que acabam rolando em espaços de convivência com outros homens?
Dentro da GM Rio essa questão é bem resolvida devido a hierarquia, mesmo assim, sempre tem um ou outro que extrapola, mas eu faço valer meus direitos de maneira cordial e educadamente os faço perceber que profissionalmente não pode haver esse tipo de comportamento, mesmo porque temos um programa dentro da própria Guarda que está atento a tais atitudes.
Em outros espaços eu tive que aprender a não reproduzir o mesmo comportamento para ser bem aceito, percebi que era uma maneira de me testarem, de tentarem ver até que ponto sou “realmente “ homem, mas quando percebi esse joguinho bobo e mesmo correndo o risco de ser lido como lésbica masculinizada ou um homem gay, decidi ser do meu jeito e fo…-se o resto. Penso que demorei tanto tempo para sentir a liberdade que sinto hoje que não é justo ter que me policiar para ser aceito por A ou B, eu me aceito, me respeito e me amo do jeito que sou e isso me basta, essa é a grande sacada.
– Na sua autobiografia, que eu sempre indico, você revive essas e outras memórias delicadas. Foi complicado, emocionante ou torturante relembrar essas histórias? Poderia comentar o processo de escrita?
Na verdade, o livro que foi publicado é o 2º que escrevi – nunca contei isso a ninguém – o primeiro foi uma catarse, um desabafo da alma e estava cheio de magoas demais, quando terminei de escrevê-lo e parei para ler, fiquei chocado com tudo aquilo e pensei: Não é isso que quero deixar, as pessoas não merecem ler isso, não quero minha vida registrada como o muro das lamentações.
Isso foi em 2008, demorei mais 5 anos para me desconstruir em um processo profundo de autoconhecimento e perceber as minhas vitórias em meio às lutas e então escrevi o que todos conhecem e que agora foi relançado em 2ª edição, corrigido e atualizado.
– Conheço muitos homens trans que preferem não se expor ou não falar sobre suas vivências trans. Por qual motivo você decidiu publicar um livro e ser visto enquanto homem trans? Como foi e está sendo erguer esta bandeira?
Sabe, eu também já me fiz essa pergunta algumas vezes, eu poderia ficar na minha, continuar com a minha vidinha que agora é muito mais estável e tranquila, mas algo me move e não me deixa ficar quieto. Eu descobri que fazer pelo outro, ajudar as pessoas alivia e muito a minha depressão, escrever um livro que conta a minha vida, mas é focado na superação, me ajudou nesse processo e penso que pode também ajudar muitas pessoas.
Depois o fato e ser um dos mais velhos me coloca em uma condição de “ter” meio que uma “responsabilidade” em não só ajudar aos mais novos, mas também alertá-los sobre os riscos e as dificuldades que poucos falam.
Eu sempre gosto de dizer que os frutos que planto hoje, não serão colhidos por mim ou pela minha geração, da mesma forma, os frutos que colhemos hoje foram plantados por uma geração, que muitos, não sobreviveram para ver o que está acontecendo graças às suas lutas. Assim, vamos aos poucos mudando paradigmas, quebrando barreiras e vencendo obstáculos, afinal nascemos Cis ou Trans todos os dias e as opiniões contrárias não nos impedem de continuar e existir mesmo sendo o Brasil o país que mais nos mata.
– Na militância, quais são os maiores aprendizados que teve? E, em sua opinião, quais são os maiores erros e acertos dela ao longo dos anos?
Eu sou muito grato à maioria das pessoas que conheço dentro do ativismo, todas, sem exceção, me ensinaram alguma coisa, eu não teria conseguido realizar tudo que realizei e participei sem o apoio de pessoas que admiro (não vou citar nomes para não esquecer ninguém), mas não posso deixar de citar o Grupo Arco Íris,( Marcelle, Júlio Moreira e Almir França) e todos do Rio Sem Homofobia representados na figura de Claudio Nascimento e mais uma enorme lista de homens trans, mulheres transexuais e as travestis com as quais compartilhei momentos incríveis e que talvez o mais marcante tenha sido na ALESP – Assembleia Legislativa de SP onde inclusive te conheci Neto, lembra? Foi fabuloso participar naquele espaço e mostrar nossos corpos e nossas lutas.
Infelizmente nem tudo são flores e também entre nós conheci a deslealdade, o preconceito, o machismo e outras mazelas contra as quais lutamos tanto, mas que acabamos trazendo para as nossas convivências e isso me entristeceu bastante. A situação se tornou para mim nociva e insustentável e por razões de saúde, (sou hipertenso e mantenho a depressão sob controle) decidi me afastar do ativismo e cuidar mais de mim e dos meus.
Quando fui convidado a integrar a CEDS e aceitei, fui muito atacado por pessoas que jamais imaginei que poderiam fazer isso e que entre outras coisas me chamaram de vendido, se negando a reconhecer, que seja lá o prefeito que for, ele seria meu chefe de qualquer maneira por eu ser servidor de carreira e pedir exoneração ou me anular, nunca fez parte dos meus planos. Desse momento em diante passei a ver o ativismo com outros olhos e a me questionar quais são os Direitos Humanos que reivindicamos, qual é o respeito que queremos, o que verdadeiramente motiva os gritos com as bandeiras nas mãos e no meio da rua quando somos capazes de difamar, humilhar, esculhambar publicamente um dos nossos. A sorte é que decepções também ensinam e o baile segue.
– Hoje em dia, quais são as principais bandeiras que a população trans devem levantar? Quais são as principais iniciativas?
A despatologização das nossas identidades é fundamental, mas diferente do que dizem por aí, não se trata de ficar sem acompanhamento médico, por que o SUS é um direito de qualquer cidadão/cidadã, o que é preciso ser feito é a retirada do rol de transtornos mentais e uma nova classificação, assim como acontece com gravidez e outras condições que não são patologias e também estão descritas no CID.
Despatologizar as identidades Trans se faz necessário para que papais e mamães não tenham receio de amar seus filhos, filhas e filhes e possam lhes dar condições de vida naturais para qualquer ser humano, pois quem gostaria de reconhecer que seu descendente, aquele que carrega o seu DNA é um doente mental? O estigma de transtorno mental provoca a negação e pode levar ao suicídio, tamanha opressão.
Despatologizar também influenciará nos profissionais que queremos ter no futuro, afinal não existe na grade dos cursos superiores (ainda que tenham tentativas de mudança) assunto relacionado a transexualidade que não seja no viés da patologia e se isso não mudar, como teremos juízes, professores, médicos, enfim todo e qualquer profissional que impacte diretamente em nossas vidas se o assunto não for tratado com naturalidade? Será que estaremos condenados a (sobre)viver à base de Decretos, portarias, resoluções e afins, enquanto o resto da sociedade tem 100% de garantias via Constituição Federal?
Somos doentes para exercermos nossos direitos e cidadania plena, mas não somos considerados diferentes quando o dinheiro ganho pelo trabalho de uma pessoa trans ou travesti, seja de maneira formal ou nas esquinas, contribui para o crescimento econômico do País. Para exercer nossos deveres não dizem que temos “privilégios”, minha nota de dez reais não tem uma marcação diferente para dizer que é fruto do meu trabalho, portanto é preciso deixar de hipocrisias e tratar todo cidadã/cidadã com o respeito que merece e que nos é “garantido” pela Lei máxima do País.
– Em sua opinião, o que ainda hoje precisamos desmistificar em relação aos homens trans?
Nossa, essa me pegou…acho que tem tanta historinha relacionada a nós, que fica difícil até começar, penso que precisamos nos descolar dessa condição de ser macho alfa. As relações precisam ser repensadas, cumplicidade, carinho, amor, parceria e tantas outras questões fazem uma relação ser completa.
Talvez a idade esteja me fazendo refletir muito sobre isso, (logo eu que fui tão galinha… haha) amadurecer me trouxe inúmeras reflexões e sobre relações ficou ainda mais profundo após a minha transição. O sexo é bom e importante, mas meu corpo não é corrimão e não sou objeto de estudo ou experiência sexual para ninguém, acredito que esse negócio de “pegador”, já que somos uma (r)evolução da sexualidade, precisa ser repensado, tanto por nós homens trans, quanto pelas outras pessoas que esperam de nós esse comportamento.
– 2018 começou agora. O que podemos esperar do Jordhan?
Como disse um amigo esses dias, “eu já dobrei o cabo da boa esperança” e está na hora de relaxar um pouco, tratar das coisas sem que elas atinjam o meu fígado e até fazer cara de paisagem, se for para preservar a saúde e o humor. Cuidar mais de mim e dos meus, dar mais atenção para a minha família, essas são metas pessoais, mas tenho outras metas que igualmente me realizam e me fazem feliz.
Depois de passar anos investindo e estudando bastante para me tornar um Coach profissional, decidi que a partir desse novo ano de 2018, vou me dedicar a trabalhar nessa área com foco na diversidade, falar de forma profissional para um público que está cada vez mais ávido por informação e conhecimento, usar de toda a minha vivência, experiência e amadurecimento, além da própria história de vida para, de alguma forma, mostrar para as pessoas quem são as pessoas do lado de cá.
– Qual é o seu objetivo enquanto coach e palestrante?
Dizer para elas que somos também pais, mães, filhos, filhas, irmãos e irmãs, que temos os mesmos anseios e medos. Que ocupamos todos os espaços e também somos profissionais nas mais diversas ocupações, de servidor público, jornalista, advogadas, professoras, delegadas, empresários, artistas, escritores e todas as atividades que possam ser exercidas por gente, mas ainda sofremos muito por falta de empregabilidade e muitos de nós são obrigados a vender o corpo para sobreviver. Falar de tudo um pouco, empregabilidade, direitos, legislação, saúde e etc.
Nunca me imaginei aposentado, em 2010 comecei a traçar outro caminho no qual eu pudesse juntar uma atividade prazerosa e remunerada a algo que fizesse realmente diferença na vida das pessoas. Antes da minha transição minha área de atuação era autoconhecimento, mas com o passar do tempo e observando que as nossas questões vêm se avolumando, decidi trilhar por essa seara, afinal eu falo daquilo que vivi, senti e sinto na pele, falo com propriedade e autoridade sobre o que me proponho a fazer.
Por outro lado, estou assustado com a enorme quantidade de gente falando por nós e ocupando espaços sem a menor responsabilidade, achando que domina o assunto, por que fez um cursinho aqui e outro ali sobre sexualidade ou leu Judith Butler e Foucault. Estou cansado de me dizerem quem somos nós, então decidi eu mesmo dizer.