Entrevista: Thina Rodrigues foi perseguida na ditadura por ser travesti; hoje capacita policiais admin Fevereiro 12, 2019

Entrevista: Thina Rodrigues foi perseguida na ditadura por ser travesti; hoje capacita policiais

Por Neto Lucon

Thina Rodrigues sabe na pele o que é viver num país marcado pela transfobia. São 56 anos de muita luta, resistência e militância. Chegou a vivenciar a travestilidade na ditadura militar, ser presa e brigar para que a cidadania plena fosse assegurada em Fortaleza, Ceará.

É testemunha viva das mudanças políticas, organização da militância e as nuances da transfobia. Para ela, depois de o grupo começar a conquistar respeito em 2000, o preconceito veio forte por meio dos conservadores e fundamentalistas nos últimos dois anos.

Presidenta da Associação de Travestis do Ceará – ATRAC – que foi fundada pela advogada travesti Janaina Dutra (1961-2004) – Thina também observa algumas transformações que motivam a seguir na militância. Se nos anos 80 foi perseguida por policiais por transfobia, hoje ela é convidada para um curso sobre direitos humanos LGBT no Ceará.

“Os novos policiais não sabem o que passamos, então temos que dizer que direitos humanos não é só para marginal, como dizem, mas para toda pessoa humana”, afirma ela, acreditando nas novas gerações. Em conversa com o NLUCON, ela falou sobre a violência transfóbica, os casos envolvendo Dandara dos Santos e Erika Isodoro neste ano, histórias e perspectivas. Confira:

– Ontem ocorreu um curso para capacitação de policiais militares do Ceará sobre os direitos humanos da população LGBT. Como foi sua participação?

É a segunda vez que participo da capacitação ao lado de uma equipe, pois aqui em Fortaleza há uma lei que aprimora a academia de polícia com curso sobre direitos humanos. Falei sobre a abordagem policial, a importância do respeito à identidade de gênero. Como aqueles policiais são novos, eles não sabem o que passamos. Falei um pouco sobre minha vida como sobrevivente da ditadura. Falei que muitas de nós éramos presas só por sermos travestis, que precisávamos nos cortar para sermos ouvidas e que muitas eram assassinadas e os casos subnotificados como “homem vestido de mulher”. Expliquei que o motivo da travesti e da transexual não estar na família, não estar escola e não procurar a saúde é porque as pessoas não nos respeitam. Expliquei que direitos humanos não é só para marginal, como dizem, mas para toda a pessoa humana.

– Houve alguma pergunta por parte dos policiais?

Perguntaram se o movimento LGBT estava desrespeitando símbolos religiosos e enfiando crucifixo no ânus, mencionando um caso. A Dediane (Souza Coordenadora Executiva da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza) respondeu que nada disso ocorreu na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Mas que foi na Marcha da Vadias, que é outro protesto e que não tem relação com a Parada. Os conservadores inventam essas histórias, bem como essa questão de ‘ideologia de gênero’, para que as pessoas não nos respeitem. Nós amamos a Deus e respeitamos a religião das pessoas. É importante dizer que esse curso não quer fazer nenhum hétero cis ser amigo de LGBT ou que sejam LGBT. O que a gente quer é respeito. É dizer que a travesti não pode ser presa ou sofrer violência por ser travesti, negra… Que não batam na abordagem. Que quando um homem trans for abordado que ele seja respeitado em sua identidade de gênero masculina. E que uma travesti ou mulher transexual sejam respeitadas na feminina.

– Ainda hoje ocorre a violência policial contra a população trans e travesti?

O maior relato de hoje em dia é das travestis que trabalham com programa. Elas dizem que ainda há muito abuso de poder e extorsão. Os policiais se aproximam do carro do cliente, abordam o cliente e, sabendo que eles tem receio de serem vistos com uma travesti, obrigam eles a pagarem alguma coisa. Às vezes tomam celular das meninas e dizem que elas roubaram. Às vezes combinam com ela sobre essa abordagem ao cliente e dá algum dinheirinho para ela. Por eu ser negra, por exemplo, eles jogam todas as minhas coisas no chão na abordagem. Já quando a menina é branca o contato é diferente: ele pede até o whatsapp dela, entende? Mas não tem como a gente gravar, pegar em flagrante, pois elas não vão fazer o B.O. A gente tem medo do dia seguinte, né? 

– Você tem medo, Thina?

Desde a morte da Dandara, da Érika, da Natalia, eu vou aos programas de rádio, por exemplo, e fico com medo. Porque alguém pode me ver e me ferir. A violência tá tão grande em Fortaleza que a gente teme qualquer coisa. Quase todo dia morre uma. Mataram uma de 15 anos faz duas semanas e a família não quis que ninguém soubesse. Foi um ato transfóbico. Ela tinha só tinha 15 anos e a gente fica, assim, sem saber como mover, de ser vítima de alguma facção.

– No Ceará, houve algum tipo de mudança após o assassinato da Dandara dos Santos e a repercussão internacional?

A gente pensava que ia parar, mas pelo contrário, depois que do assassinato da Dandara e da Erika, aumentou a transfobia. Não há investigação completa e não há quem se sensibilize. Quando falam que o caso é envolvendo uma travesti, eles engavetam. O caso da Dandara, mesmo, teve repercussão, alguns foram presos, mas três continuam fugitivos. Por que deixaram pra lá? E se fosse 10 pessoas que tivessem matado um delegado, eles já estariam presos? O caso da Érika, que foi jogada debaixo de um viaduto, depois de ser agredida por 10, ninguém sabe quem foi? É incrível, foi um crime perfeito. Então, falta querer. Fora os casos em que a família do assassino coloca um advogado particular e passa a alegar que foi legítima defesa? No caso da Dandara tentaram dizer que foi legítima defesa. Mas 10 contra uma é legítima defesa? Depois daquele vídeo eles ainda dizem que é legítima defesa? Quando uma travesti está na porta de um motel e o cara dá três tiros em cima de uma moto é legítima defesa? Isso é um verdadeiro ato de transfobia.

– Como foi enfrentar o período de Ditadura?

Na época da Ditadura, a gente não tinha direito a nada, era pior, ia presa de graça. A gente não podia andar em bares, era caçada como bruxas, muitas delas eram assassinadas. Muitas iam presas e não voltavam. Teve uma vez que fui presa e tinha 25 no camburão, todas apertadas. Quando chegou na cadeia, colocava a gente com mais de 50 homens sem sentir pena. A mais feminina era algemada fora da cela e a menina sumia. Depois, tiravam mais duas ou três e colocavam para lavar banheiro. E no outro dia ninguém as encontrava mais. Na Praça do Ferreira, tinha um grupo de travestis que circulava com violência, virava o carro de polícia, se cortava. Mas eu via que era uma reação, porque não queriam ser presas, caladas ou assassinadas de graça.

– Thina, como foi para você dizer que é travesti neste período?

Eu vim do interior quando tinha 17 anos. Assumi travesti aos 22 anos. Minha vó e meus irmãos vieram moram comigo e a aceitação foi a melhor possível. Nunca tiveram nenhum tipo de discriminação. O problema foi com a minha mãe, quando veio me ver. Ela não aceitava, não aceitava, não aceita e terminou me aceitando quase nos últimos dias de vida. Graças a Deus o mundo está mudando e algumas meninas estão sendo aceitas dentro de casa. O que acontece muito é que as mães não querem que elas vão para rua, que elas vão estudar.


Qual é a avaliação que você faz da transfobia ao longo dos anos?

Quando eu comecei, a gente não percebia que era travesti. A gente era vista como “homem que vestia roupa de mulher”. Mas eu não tinha medo, eu enfrentava. Eu ia ao centro da cidade, mesmo sofrendo discriminação. Em 1988, eu fiz uma denúncia contra a polícia militar e ficaram me caçando. Fiquei três meses escondida. Eles ficavam com minha foto e ficavam me procurando. Eu senti que seria assassinada. Tanto que quando fui levada para a delegacia, eu achava que não voltaria. Para a sociedade, a gente era a pederastia que veio para a acabar com a família. Mas não era a família que era contra a gente. Era a polícia e o homem casado que ficava com a travesti e depois se arrependia. Nos anos 2000, começou a militância forte e a sociedade começou a nos respeitar, a nos ver com outro olhar. De 2015 pra cá piorou a transfobia. Até então a gente só falava “homofobia”, mas quando começamos a dividir as opressões, a falar de lesbofobia, de transfobia, é que aumentaram os casos. Não pelo termo, mas porque as igrejas fundamentalistas e os políticos conservadores começaram a passar mensagem errada sobre kit gay, a se colocar contra a travesti querer estudar… E esse governo fez aumentar a violência no Brasil todo, não só no Ceará.

– Quais são as ações da militância diante deste cenário?

Fazemos audiência publica, seminários, visitas às delegacias, visita aos presídios para ver como está sendo o tratamento com elas, e abordagem corpo a corpo. Essa abordagem é para evitar que chegue a violência, estratégias para que elas não acabem nas mãos de bandidos, para negociar o uso da camisinha, que muitos não querem. Muitas vezes a gente precisa abaixar a cabeça e não responder a uma provocação na rua, mudar de calçada, porque muitas vezes ele já está com o objetivo de matá-la. Conseguimos aqui uma ala para LGBT que são presos e que evita que eles sofram preconceito e violência na mão de outras pessoas. A gente ainda tem que lutar, apesar de a Constituição dizer que temos direito de ir e vir, ter direito a moradia, educação. É por isso que nossa Associação quer a cidadania plena, que ela consiga emprego, colégio, que faça faculdade… Porque a prostituição não é crime, mas ela vai passar. A travesti vai ficando velha, os cliente vão procurar as outras mais novas e ela vai ficar à deriva. E a perspectiva de vida é de 35 anos. Feliz daquela que passou.

– Ainda que a expectativa seja baixa, a gente começa a ter uma geração de travestis na terceira idade. Há alguma ação voltada para essa população?

É muito preocupante para mim. Seria muito útil para gente ter alguma política pública para a terceira idade das travestis, mas a gente não tem para nova, como vão pensar para a de (da terceira) idade? É como se a gente não existisse e não pensasse no amanhã. É preocupante. A gente está vendo algum curso de empreendedorismo para algumas, mas quando a gente vai ver é tanta burocracia, tem que ter o nome limpo, tem que pagar IPTU, imposto, que elas terminam assustadas e não vão mais. Não são cursos que acolhem. Você tem que acolher primeiro, empoderar, dar um olhar que ela pode seguir esse rumo. Você ainda vê poucos casos de travestis na rua com mais idade. Algumas se tornam cabeleireiras, peruqueiras, empregadas domésticas, que cuida da avó, mas não tem, por exemplo, uma aposentadoria. Só o fato de existirem e sobreviverem é uma glória.

– Aos 56 anos, como lida com a vaidade?

Não sou vaidosa. Tive um trauma. Arranjei uma namorado há uns 10 anos e passei os cinco piores anos da minha vida. Ele me batia, pegava minha cara e esfregava no chão, tenho várias cicatrizes dessa violência. Quando eu fazia maquiagem, fazia cabelo, ele me descabelava. Quando eu fazia amizade com alguém ele fazia acabar com essa amizade. É um trauma, mas estou levantando a minha autoestima de novo agora. Mas isso não quer dizer que não me arrumo quando vou a algum evento. Eu dou um caldo (risos).

– Com certeza! Tem algo que você gostaria de acrescentar?

Queria que você você falasse da ATRAC, que está com 16 anos e continua na luta. Ela ocorre desde a nossa finada Janaina Dutra, a Dama de Ferro, nossa advogada travesti. Não abaixamos a cabeça. Queria falar também que aqui no Ceará há uma demora muito grande para retificar o nome civil. É a defensoria pública que faz, e demora até dois anos e muitas vezes não autorizam mudar o gênero. No interior tinha um juiz que permitia, mas ele foi transferido e agora as meninas estão suando. Eu pedi há cinco anos e não consegui. Mas no meu caso, ao contrário das outras travestis, eu não ligo. Quando chego em algum lugar e me chamam pelo nome masculino é a própria pessoa que fica constrangida.