Por Neto Lucon (Fotos: Javier Valado e Italo Cristóvão)
Em meio a tantos ataques, desencontros, ferveções, lágrimas, transfobia e problematizações, é possível também encontrar lindas histórias de amor. Encontros inspiradores, laços que superam as adversidades e a escolha permanente de estar, sentir e caminhar juntos. Às vezes, trata-se de um olhar diferente para quem está ao seu lado e, pronto, tudo muda.
É o caso do relacionamento da militante transfeminista Geovana S Soares, de 22 anos, e do pizzaiolo cis Rafael Dantas, de 21, que iniciaram o namoro depois de uma forte amizade e de uma paixão platônica. E que hoje estão casados.
Há cinco anos, o encontro não poderia ser mais inusitado: debaixo de uma tenda de festa junina, se escondendo da chuva e se apertando para que não se molhassem. Olhares, risinhos e alguma insinuação de interesse? Que nada! Rafael pisou sem querer no pé de Geovana, que devolveu cheia de irônia: “O pé debaixo é meu”. Pedidos de desculpas e a festa seguiu em Aracajú com eles separados.
O pizzaiolo conta que se atraiu por Geovana desde o momento em que a viu. E que assim que chegou à sua casa, depois da festa, tratou de iniciar uma busca pelo Orkut e MSN (!!!). Convites aceitos, uma proximidade se iniciou, outros encontros surgiram, mas a amizade era o que prevalecia. Ele diz, contudo, que o sentimento por Geovana aumentava a cada dia. E que o amor platônico durou três longos anos.
Após um convite da transfeminista para conversar, Rafael foi até a casa dela em um domingo à noite. Foi a oportunidade para ambos finalmente deixarem o coração falar. “Ele estava muito sério e nervoso, e confessou que gostava de mim. Disse que vinha me amando em silêncio todo esse tempo, e que aquilo estava sufocando ele, mas que entenderia caso não fosse recíproco. Na hora eu fiquei tão sem reação que falei que amava ele também”, revela Geovana.
Ele lembra a data exata: dia 6 de abril de 2014. “Foi o que eu mais esperava: ‘Ser retribuído pelos mesmos sentimentos que eu tinha por ela’. Nessa conversa ela me falou tudo que pensava e sentia por mim, como também quis saber o que eu sentia e pensava sobre ela. Foi uma longa e emocionante conversa, sendo ela o início da nossa união e o momento que marcou nossas vidas”. Ounnn…
PRECONCEITOS E UNIÃO
Rótulos! Quem liga para rótulos quando se está apaixonado? O casal em questão até poderia não se importar, mas houve quem olhasse torto e que disseminasse o seu preconceito.
Um dos casos que marcaram Rafael foi quando o casal estava dentro de um ônibus e uma criança apareceu, rindo deles e apontando os dois para os pais. “Entendemos que era devido à nossa união e pelo fato de a criança reconhecer que eu estava ao lado de uma travesti”, lamenta.
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Pela profissão, ele diz que lida todos os dias com todos os tipos de pessoas e com todos os tipos de preconceito. Rafael também sofreu preconceito da própria família, que depois de um longo processo reconheceu e entendeu a união. “Amigos e a sociedade em geral ainda é um problema referente a isso. A falta de conhecimento, o desinteresse em entender e a ignorância motiva o preconceito sobre a nossa união e até mesmo sobre cada um de nós”, diz.
E como eles lidam com o preconceito? Enquanto Geovana afirma ser mais explosiva – “estou ficando mais paciente”, Rafael simplesmente ignora os preconceituosos de plantão. “As pessoas têm de entender que cada um tem a liberdade e opção de viver a vida como bem quiser. Simplesmente vivo a minha vida independente do que as pessoas acham ou pensam”.
NAMORAR UMA TRAVESTI/ NAMORAR UM HOMEM CIS
Morando juntos há dois anos, Geovana afirma que o mais complicado de ser casada com uma pessoa cisgênera é que ela muitas vezes não entende o peso de ser trans no país que mais mata travesti no mundo. E que tem que estar munida de muita paciência para sensibilizar e ensinar.
Já Rafael alega que o mais complicado é o fato de adentrar em questões que anteriormente jamais havia pensado. Ele admite que, antes de se relacionar com Geovana, não sabia sequer a melhor maneira de tratar uma travesti: ele ou ela. (para os desavisados, é sempre no feminino, viu? É elA).
“Antes eu não entendia sobre o assunto e, hoje, devido ao fato de ela ser militante, aprendi a entender de verdade a travestilidade. Foi o melhor aprendizado que tive, afinal hoje posso explicar para as pessoas que tem dificuldades em lidar com o assunto e vejo o quanto é bom ver as pessoas falando de maneira correta. Sei da importância da militância, incentivo a Geovana e participo sempre que possível”, diz.
Ele afirma que considera Geovana muito fofa quando ela dá palestras e se entrosa com as pessoas dispostas em entender a travestilidade. “Ela se sente tão feliz que chega a ser fofo a aparência dela. Vejo que luta pelo que ela representa e pelas outras travestis”.
Na vida a dois e longe das especulações a respeito das caixinhas “trans” e “cis”, a transfeminista diz que se encanta com o jeito carinhoso e companheiro do marido. “Gosto muito de ver filme de heróis com ele, pois eu sempre gostei desse tipo de filme”. O pizzaiolo também afirma que gosta de fazer tudo ao lado da esposa. “Para mim, o melhor é ficarmos em casa juntos, fazendo de uma coisa bem simples ser a melhor para nós dois. Na verdade, tudo que eu queira fazer só tem graça com ela ao meu lado”.
CONFISSÕES
– O que vocês gostariam de dizer um para o outro que não disseram até hoje?
Rafael: Diria que a amo do jeitinho que ela é e que estarei junto a ela para bater de frente com o preconceito que as pessoas pregam. A sociedade precisa entender que não tenho medo de me expor, independente do que elas pensam por eu ser casado com uma travesti.
Geovana: Diria que sei o quanto sou complicada por conta do meu jeito de ser. E agradeço a ele pela insistência e paciência depois de todos esses anos ao meu lado.
Ambos afirmam já se sentirem casados, apesar de não terem oficializado judicialmente a relação. Geovana diz sonhar com uma cerimônia e defende que atualmente não pensa em filhos – “depois que fui tia, vi o trabalhão que dá e prefiro os meus dois felinos”. Mas Rafael frisa que, sim, “filhos estão nos nossos planos”.
“Queremos mostrar para a sociedade que também somos uma família, unida, completa, que também sonha, que tem planos e é feliz. Talvez isso sirva de exemplo para outras pessoas”, declara ele.
SOLIDÃO E HOMENS DE VERDADE
Poderíamos ter encerrado o perfil do casal no parágrafo acima. Mas a história de Geovana e Rafael não reflete a realidade de grande parte das travestis e mulheres transexuais.
Isso porque, motivado pelo medo de sofrerem preconceito, pela transfobia e pela construção social cisnormativa, que impõe que relacionamentos se deêm somente entre pessoas cisgêneras, muitos homens que se relacionam com a população trans não assumem o relacionamento. Terminam vivenciando as afetividades construídas através de uma estrutura transfóbica e até abusiva. Vide homens que evitam sair com suas parceiras trans em lugares públicos ou que se envolvem com travestis somente entre quatro paredes.
A transfeminista afirma que Rafael é o primeiro homem que assume publicamente a relação. E que isso é prova de que anda faltando “homens de verdade” em nossa sociedade. “Isso vale para todos, cis e trans”, aponta.
Para os homens que se interessam por trans, mas que têm medo do que podem enfrentar, Rafael aconselha: “Não existe preconceito. O que existe são pessoas ignorantes que desmerecem a felicidade do próximo. O fato de não se expor por conta do preconceito o torna preconceituoso de si próprio. Sou feliz por ser quem sou e não escondo nem temo o que as pessoas veem de mim. Não esconderei jamais o quanto sinto-me feliz, completo e amado cada dia da minha vida por saber que encontrei a pessoa que se encaixa a mim e que amo de verdade, sendo ela travesti”.
Gente, é muito amor!