Nego do Borel e Luisa Marilac
Toda a polêmica envolvendo o cantor cis Nego do Borel e a digital influencer travesti (ou mulher trans) Luisa Marilac pode ser resumida em uma frase: “a transfobia, que outrora era vista como mera piada ou um preconceito menor, não será mais tolerada, aceita ou minimizada”. E que a população trans não aceita mais migalhas de aprovação, sobretudo vindo de artistas que demonstram interesse pelo pinkmoney.
Para quem ainda não sabe, Luisa fez um elogio a Nego do Borel nas últimas semanas sobre uma foto em que ele estava descamisado. “Cada dia que passa você está mais gato, homem”, escreveu ela. Diante do comentário, Nego disse que Luisa “também é um HOMEM gato” e sugeriu que ela “deveria estar cheio de gatas”. A transfobia, que em outro momento poderia ser vista como mera piada, apitou.
Tudo porque Luisa é uma travesti ou mulher trans, se identifica com o gênero feminino, merece e tem o direito de ser tratada como tal. Dizer que ela é homem é desrespeitar toda a história de vida, construção de sua identidade de gênero e a luta pelo reconhecimento da pessoa que é, inclusive legalmente. Isso mesmo, além de socialmente já dever ser entendida e lida como mulher, ela tem em sua documentação oficial: Luisa Marilac da Silva, sexo feminino.
O fato de Nego sugerir que ela está “cheio de gatas” também aponta para outra questão: a masculinidade frágil que advém do machismo forte. Uma tentativa de despistar um elogio público de uma mulher trans e de distanciá-la de uma possível associação de um flerte. Isso acontece na vida cotidiana: homens cis héteros – muitos deles que até ficam com mulheres trans – se sentem intimidados ao se verem na companhia pública de uma mulher trans ou travesti. Daí partem para estratégias nada elegantes para afastar rumores. O ex-jogador e político Romário, ao ser flagrado com a modelo transexual Thalita Zampirolli, por exemplo, a chamou de “camarada”, disse que “gostava mesmo de mulher” e a processou. Como se Thalita não fosse…
Algo que Nego do Borel deveria saber, uma vez que se colocou como aliado e até se “vestiu de travesti” no clipe “Me Solta” no último ano, e dado um beijo na boca de um modelo cis hétero. Mas vale dizer que desde este clipe ele já havia recebido críticas, e sido acusado de querer apenas pink Money (o dinheiro que vem da população LGBT), por não convidar a própria população LGBT para participar da obra. Em outras palavras, trata-se de um clipe de um cantor hétero cis fantasiado de LGBT, dando beijo em outro hétero cis e que se utiliza da população LGBT para causar e fazer… Graça.
Ainda assim, muita gente não entendeu a polêmica com Marilac ou achou muita polêmica para pouco caso. Afinal sabemos que a transfobia no país geralmente é caso de violência física, violação de direitos e assassinato. Segundo dados atualizados da Transgender Europe, o Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans e travestis em todo o mundo. Na última semana, um caso chamou atenção pelos requintes de crueldade. Caio Santos de Oliveira, de 20 anos, confessou ter assassinado a travesti Quelly da Silva, de 35 anos,e tirado o coração dela, em Campinas, interior de São Paulo. Contudo, há proximidade entre a transfobia disfarçada de piada e a violência física sofrida. É só se atentar que, antes de matar Kelly, Caio transou com ela e, depois, a chamou de “demônio”.
É o transfeminícidio (o homem se achar superior à pessoa que se identifica com o gênero feminino), é a transfobia (a visão de que vidas trans não valem) e também o medo de ser visto com uma mulher trans e sofrer, vejam só, mesma PIADA / preconceito que a travesti sofre.
Durante o episódio, foi possível ver diversas pessoas passando pano (minimizando a transfobia) para Nego do Borel, fazendo-o desperdiçar uma excelente oportunidade para aprender. Nada muito novo, uma vez que a aceitação da transfobia é histórica. Estivemos acostumados a ligar a TV e ver pessoas trans e travestis sendo alvo de piada. O estigma da chacota, sempre denunciado pela militante travesti Claudia Wonder (1955-2010), aparecia nas pegadinhas, em que a travesti era colocada para “enganar um homem”, nas brincadeiras de adivinhar quem era a travesti e quem era a “mulher de verdade” ou até mesmo nos programas que as colocavam enquanto artistas, mas que depois pediam para dizer o nome masculino. Isso sem contar os programas policiais, que ainda hoje violam a imagem das travestis e as colocam como piada. Então para muita gente é natural que uma travesti seja desrespeitada.
A imprensa nos fez acreditar que mulheres trans e travestis são apenas um “homem vestido de mulher”, “alguém se passando por quem não é”, “uma farsa”, cujas atribuições são dadas por diversos estigmas e preconceitos (para satisfazer o homem, para se prostituir, porque é sem vergonha, porque é palhaço de luxo, porque é uma artista). E dado o machismo, LGBTfobia, não existe nada mais cômico que isso.
É preciso destacar que diversas artistas que conseguiram visibilidade nos anos 80, 90 e 2000 tiveram em algum momento o estigma da chacota estampado na testa, caso contrário não seriam inseridas. É só pensar nas transfobias que a modelo Roberta Close passou durante sua exposição nos anos 80 e 90, sendo referida como “a mulher mais bonita do mundo é homem” e sendo alvo de piadas a cada participação em programas de TV. Todos os apresentadores passaram ilesos. Ou ver Rogéria (1943-2017) dizendo que “não ficou louca e que sabe que é homem” para manter o posto de “travesti da família brasileira” e ser melhor absorvida. A transfobia sempre foi dada em forma de dica: “por mais mulher que seja, ainda é homem”. E muita gente reproduz isso, vide Borel.
Roberta Clos foi alvo de diversas transfobias nos anos 80, mas ela era tolerada
O processo de humanização das pessoas trans e travestis tem um desafio difícil, longo e manchado de sangue. Ele não é recente e vem sendo construído a base de muita luta, resistência e invisibilização pela imprensa hegemônica. Vale informar que em 21 de abril de 1985, militantes travestis, incluindo as moradoras da Casa Brenda Lee, saíram às ruas para protestar pela primeira vez por liberdade sexual. Em 1992, surgiu o primeiro movimento organizado de travestis e transexuais no país, a ASTRAL, localizada inicialmente no Rio de Janeiro.
Com o tempo, outras ongs surgiram, inclusive organizações nacionais, e o ativismo passou a ganhar força, voz e vez. Aliado a trajetórias pessoais, pioneirismos em diversas áreas e o maior entendimento sobre o que é uma pessoa trans (e sobre gênero), a luta trans está passando a ser uma realidade no país.
Sobre o caso com Borel, Luisa afirmou que não irá processar o cantor, pediu para os fãs não o crucificarem e lamentou a perda de um patrocinador. Já Borel, que num primeiro momento se calou, resolveu pedir desculpas ao receber inúmeras manifestações em suas redes sociais. Depois foi vaiado em um show com Anitta e teve presenças canceladas em seu DVD. A mãe do cantor declarou que ele está com depressão e com medo de ser agredido – como se a população trans em algum momento respondesse com agressão as transfobias cometidas por algum famoso, como se a agressão não viesse justamente das pessoas cis heterossexuais contra pessoas trans. Por fim, cancelou a gravação que ocorreria no dia 29 – Dia Nacional da Visibilidade Trans.
Ele disse que está aprendendo e percebendo de verdade que a causa trans é muito séria. Vale dizer que tal aprendizado só veio porque não passou ileso diante de sua transfobia. Porque foi alertado por meio de um grupo de pessoas que, apesar de ser considerado pequeno e que mesmo em um momento político de retrocesso aos direitos humanos, aprendeu a fazer barulho. Não foi pelos fãs que o defenderam com mais transfobia, tampouco pelos amigos que passaram pano para o preconceito. Foi por quem espera um mundo mais justo e igualitário para todas as pessoas, incluindo as pessoas trans. Se ele de fato se arrependeu e mudou, somente o tempo dirá. Mas ficou a mensagem, a reflexão e o registro em sua trajetória. Que a indignação diante da transfobia cresça, se espalhe (não só quando envolve famosos) e que transfóbicos (finalmente) não passem.