Aos 61 anos, militante travesti Anyky Lima fala sobre ditadura, transfobia e terceira idade admin Fevereiro 12, 2019

Aos 61 anos, militante travesti Anyky Lima fala sobre ditadura, transfobia e terceira idade

Por Neto Lucon
Fotos: Lucas Ávila
Diretamente de Belo Horizonte

“Sou travesti, idosa e mereço respeito”. Foi carregando uma plaquinha com essa mensagem em uma foto publicada nas redes sociais que Anyky Lima conseguiu dar visibilidade para uma realidade pouco vista, conhecida e valorizada no Brasil: a das travestis que chegaram na terceira idade.

Aos 61 anos, a carioca radicada em BH é exemplo de resistência e superação num país cuja expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos. Anyky driblou o desamparo familiar desde os 12, a sociedade transfóbica, a violência da ditadura, ao boom da aids, aos desafios da prostituição, os preconceitos institucionais e outras adversidades. Sobreviveu, viveu e continua na ativa.

Após quase 50 anos na profissão do sexo, ela atua como costureira, aluga quartos em uma pensão para travestis e mulheres transexuais morarem e tem um importante papel na militância. Anyky ocupa espaços, participa de manifestações e figura em diversas campanhas, como a “Que diferença faz ser travesti? O seu respeito faz toda a diferença”, do Ministério Público de Minas Gerais.

Acolhedora, bem-humorada e sincera, ela recebeu o NLUCON em sua casa e revelou detalhes de sua trajetória emocionante e refletiu sobre a existência travesti no Brasil. Contou também que pretende viver por muitos anos e que irá fundar uma nova ong para a população de travestis e mulheres transexuais, com objetivo de empoderar novas meninas para a luta.

– Toda vez que falo sobre travestis na terceira idade muita gente fica surpresa. Por que você acha que isso acontece?

Como as pessoas veem as meninas morrendo muito cedo, elas pensam que a gente não envelhece. E muitas das que envelhecem acabam se recolhendo ou se escondendo por questões de doença, por não poder fazer mais programa ou até mesmo por vergonha. A gente vive muito da beleza e as novinhas são ruins com as mais velhas. Chamam de “maricona”, aquelas coisas. Ou seja, a gente sofre a vida inteira, chega na velhice e ainda vê uma debochar da outra. Daí ela se sente mal e se afasta.

– O que você percebe quando as pessoas sabem que você é uma travesti na terceira idade?

Elas já ficam assustadas comigo porque acham que eu sou mulher lésbica [cis]. Ninguém me define como travesti. Em muitos eventos que eu vou muita gente pensa que eu sou mãe de alguma travesti que foi assassinada. Mas quando veem que sou a própria travesti, elas ficam abismadas, interessadas. Os homens, então, falam coisas que dão até nojo (risos). Mas já escutei: “Cara, essa velhinha é homem?”. Ainda hoje as pessoas confundem a travesti com homem, como se não tivéssemos uma identidade feminina. Eu ainda me defino como travesti, porque na minha época não existia essa palavra transexual.

– Há uma resistência a novos termos?

Não, é porque travesti para mim é um termo de luta. Tudo o que aparece de ruim era e é com a travesti. É a travesti que morria, é a travesti que era espancada, era a travesti que apareceu primeiro dando a cara a tapa e eu nunca vou deixar de usar esse nome. Para mim, transexual é um nome que chegou muito recentemente e que às vezes penso que é um tipo de higienização. Outras pessoas se denominam “trans” para serem aceitas pela família, para serem aceitas pela sociedade. Mas eu, que já gosto de cutucar as pessoas e a sociedade, falo que sou travesti. Para elas entenderem que a travesti pode estar em todos os patamares.

– Eu vi que você estava em uma foto com uma plaquinha: sou travesti e quero dignidade e respeito. Na terceira idade, essa luta por dignidade e respeito é diferente?

Não existe respeito quando descobrem que você é travesti. Eu senti isso um dia que eu fui ver uma casa para comprar e o advogado começou a conversar comigo, me chamou de “dona pra cá, dona pra lá”. De repente ele pediu para eu preencher um papel e eu falei “Meu nome é esse, mas eu gosto de ser chamada de Anyky”. Daí ele não me tratou mais como senhora, ele começou a me tratar como se eu fosse um objeto qualquer, uma cadeira, e às vezes me chamava de “ele”. Horrível… Na época eu ainda não havia feito a mudança do nome nos documentos. Aliás, eu nunca pensei que conseguiria retificar o nome e o gênero. Demorou oito meses e veio do Rio de Janeiro. Fiquei tão nervosa que comecei a chorar. Achei o máximo.

– Existem políticas públicas para a travesti da terceira idade?

Saúde é a maior política pública que a população trans em geral, e principalmente a idosa precisa. Mas esta pauta não contempla as travestis em geral, muito menos a travesti idosa. A gente nem escuta falar da travesti idosa. Mas, às vezes, eu mesma sou culpada porque não falo da travesti na terceira idade e eu já sou uma travesti na terceira idade. Hoje, a gente precisa focar nessa população, porque se você for no Eduardo Menezes Hospital você vai encontrar a travesti mais velha jogada. Aí acaba sem identificação, porque às vezes ela precisa da família e é obrigada a tirar aquela característica de mulher e a se vestir de homem. E tudo isso acaba abalando ainda mais a pessoa.

– Foi tranquilo para você lidar com o passar dos anos?

Sou uma pessoa muito realista, adoro a minha idade, tanto que eu não vou pintar mais o meu cabelo. Eu quero chegar em mais de 100 anos. Para mim é uma glória chegar aos 61 anos, ter passado pela ditadura, ter passado pela aids, ter passado por toda essa violência e ter conseguido sobreviver. Só é triste porque vi muitas amigas morrerem. Mas acho que ter chegado até essa idade é uma vitória para a nossa população. Eu consegui sobreviver, não me descaracterizei, continuei sendo a mulher que sempre fui. Hoje eu me sinto mais feminina do que era antigamente, então para mim é maravilhoso ser uma coroa. Na militância, sou reconhecida e me sinto bem. Talvez não devesse sentir, porque não sou diferente das outras meninas e se achar traz um afastamento. Hoje, eu posso chegar na frente de um delegado e discutir com ele, sendo que antigamente eu não tinha essa oportunidade. Cada dia que passa, eu aprendo mais e dou valor ao que eu faço. Porque eu confio nessa comunidade. Só as dores é que são “uó”.

– Você tem algum problema de saúde?

Todos! (risos). Pressão alta, silicone, deito pra cá dói, pra lá, dói. Então é horrível. E não tenho me cuidado, porque não é um habito a pessoa trans cuidar na saúde. Tem aquela mania de “Ah, tô com uma dor de cabeça, vou tomar um comprimido”. Agora eu tenho um médico marcado e eu não vou deixar de ir, porque estou sentindo muitas dores no silicone, o meu pé está inchando muito. Eu sofri uma cirurgia lá em Diamantina. O meu testículo ficou desse tamanho (faz do tamanho de uma bola de futebol), eu tive que tirar um. Aí passou para o outro e eu tive que tirar o outro. E eu perdi todo o hormônio que eu tive no corpo. E eu não posso tomar hormônio porque tomo remédio para pressão, então eu tenho que ir ao médico para saber o que está acontecendo. O meu peito também tem manchas pretas por causa do silicone, eu ia fazer a cirurgia, mas o médico me humilhou e eu deixei de fazer. Estava tudo pronto para fazer, mas eu deixei.

– Você acha que mudou a maneira de como as pessoas olhavam as travestis antes para como olham agora?

Acho que hoje existem muitas pessoas que não são LGBT e que estão na luta para que essa identidade seja reconhecida. Mas não acho que mudou. Eu vejo a mesma coisa que acontecia comigo: as pedradas. As meninas ainda levam pedradas, ainda são assassinadas sem ninguém fazer nada. Uma vez uma menina levou uma facada aqui na Pedro II, eu fui lá e quando a polícia chegou: “Ah, é um (sic) travesti”, como se não fosse nada. Então eu acho que não mudou. As pessoas usam essa população para o bem-estar deles, para o prazer deles, mas trata-se como um robô ou boneco, que você pode usar ou destruir a hora que quer. 

Ainda olham a travesti e pensam: é marginal, é drogado e é ladrão. E não é. Esquecem que quando você está na rua você está próximo a tudo. Mas tem muitas meninas que vão para a rua só para ganhar o dinheiro delas. Não fuma cigarro, maconha, não cheira, não bebe… Tem outras que fazem, mas isso é com qualquer ser humano. O problema é que as pessoas não veem as travestis como ser humano. E nem como bicho, porque as pessoas gostam de bicho e não gostam da travesti. 

A violência contra trans é totalmente diferente daquela contra gay e lésbica, porque o gay e a lésbica tem ao menos a definição: “é um homem que gosta de outro homem”, É a mulher que gosta de uma mulher”. E o que é a travesti? Nada. Ela não é nada, não se encaixa em nenhum dos quadrados da sociedade. E é muito triste ser vista como nada.

– O que acha dessa nova geração?

Eu acho que também não mudou. É igualzinha à minha geração. A gente quer viver, viver, viver. E acha que não vai viver muito, então quer viver o momento. Tudo na travesti tem que ser na hora, sabe? Se ela quer um peito, ela quer na hora. Se ela quer um cabelo, ela quer na hora. A travesti não vive o amanhã, ela só vive o momento, hoje. Mas isso na minha época também era assim. Se a gente queria tomar hormônio, a gente tomava uma cartela inteira de hormônio. Eu mesma chegava a tomar duas injeções de hormônio. Tudo bem que eu desmaiava, mas estava com um corpo e umas pernas belíssimas (risos). Era a dor da beleza.

– Qual é o conselho que você daria para elas?

É que elas se esforçassem e conseguissem estudar um pouco. Nem que ela enfrentasse, nem que ela batesse, apanhasse, porque o estudo faz muita falta. Nem precisa ser muito estudo, mas pelo menos um pouco. Porque eu vejo muitas pessoas serem aproveitadas porque não tem estudo. Eu acho que a prostituição ela tinha que ser um lazer: “Eu trabalho, tenho minha carteira assinada, mas vou lá na rua porque eu gosto e para ganhar um dinheiro extra”. Eu não queria que a putaria fosse uma obrigação. Mas enquanto os pais jogarem as meninas para fora de casa, isso vai acontecer.

– Então você não encara a prostituição como profissão?

Tem gente que encara como profissão, mas as pessoas não encaram como profissão. As pessoas falam que a gente está ali porque somos um poço de sexo, que fazemos sexo uma com a outra, com a parede, com o cabo de vassoura. Então a gente fica numa situação estranha. Eu sempre gostei muito da putaria, porque lá eu fui amada, desejada, espancada, espanquei. Tinha coisas tristes e coisas boas. Mas acho que a prostituição deveria ser uma coisa que você está porque quer, não como uma obrigação de ir. Porque tem gente que gosta, mas tem gente que não gosta de se prostituir. Eu me prostituí até os 50 anos, quando descia para a rua com um consolo, porque já havia feito a cirurgia nos testículos.

– Você foi expulsa de casa aos 12 anos. Como ocorreu?

Eu fui muito rebelde, não fui uma criança boazinha. Não falava nem que era travesti, eu falava que era mulher. Tinha sonho de me casar de véu e grinalda, não me conformava que as pessoas dissessem que eu era igual ao meu irmão. Eu dizia que queria ser como a minha irmã. E eu tive um conflito muito grande com a minha família. Eu discutia mesmo, eu gritava dentro de casa, que eu era mulher, que ia me casar. E isso era um choque muito grande para a minha mãe, porque ela era Pernambucana o meu pai também era Pernambucano. Eles eram primos legítimos, casados, cortavam cana e tinham toda aquela tradição por trás. Se hoje é difícil para uma família aceitar, imagina na minha época. Então ficou uma coisa insuportável na minha casa, porque eu não aceitava mesmo. Eu roubava as maquiagens da minha irmã, eu roubava as calcinhas da minha irmã, a minha mãe não deixava eu dormir na cama.

– O que representa família para você?

Quando eu fui expulsa de casa eu fiquei com muito ódio da minha família, mas depois eu vi que não podia ter ódio. Não foi só a minha mãe que me botou para fora de casa, foi a sociedade inteira, que me apontava, que ia lá para a minha mãe falar que eu era isso ou aquilo. Hoje eu digo que a minha família eu construí da mesma maneira que construí o meu corpo. A minha família são as meninas que moram comigo, porque se eu cair durinha aqui quem vai me socorrer são elas. Então, eu sei que tenho irmãs de sangue e tudo, mas é como se eu não tivesse. Eu considero e tudo, mas não tenho vontade de ir ao Rio de Janeiro. Eu vou, fico dois dias e já quero vir embora. E às vezes eu vejo que as pessoas gostam de mim por outro interesse. Por um interesse material.

– Para onde você foi depois de ser expulsa?

Eu fui para o Flamengo, eu fiquei na beira da praia e lá tinha um mendigo. Ele ficou com medo de mim e eu fiquei com medo dele. Depois eu comecei a ver aonde as meninas iam e eu comecei a ir também. Só que eu apanhava, porque não tinha cabelo, o cabelo estava começando a crescer, não tinha corpo, não tinha nada e elas não me aceitavam. Comecei a ver que as meninas também saíam de carro e eu ficava curiosa. Quando vi que a rua estava vazia, eu entrei no primeiro carro que perguntou o preço. Depois que eu descobri que alguma coisa no meu corpo dava dinheiro, ah, meu filho, ninguém me segurou mais. Logo depois eu fui para zona, para Vitória, de carona…

– Como você sobreviveu sendo tão criança? Você era uma criança, tinha 12 anos!

Nunca parei para pensar nisso, mas ninguém teve peninha de mim, ninguém me acolheu ou disse que me levaria para casa, nada disso. Para as pessoas, viado não é mais criança. Desde quando percebem que é viado, você não é mais criança. Desde o momento que você faz a transição você deixa de ser criança. Então você não é nada. É isso, você não é nada. Não sei como sobrevivi, mas não fiquei muito tempo no Rio. Quando fui para Vitória, via outras pessoas iguais a mim e eu era mais livre. A polícia da época não queria saber se era menor, ela queria é fazer covardia, bater, prender e soltar depois. Lembro de uma vez que levei muita palmatória na mão, apanhei muito. Ficava presa dois ou três dias e depois eles soltavam. Corri muito risco, porque na época também não tinha preservativo e eu tive muita sorte de não pegar nada.

– Hoje em dia vocês são exemplos para a geração mais nova. Mas em que vocês se espelhavam quando eram mais novas?

Lembro da Roberta Close, na beleza dela e das meninas que saíam na revista Manchete. Eu ficava louca no carnaval quando saíam os especiais com aquelas travestis lindíssimas. Tinha aquela dos Leopardos [Elloína]. Eu me inspirava naquela beleza, mas não tinha ninguém que inspirasse para a gente correr atrás. Naquela época a gente tinha que correr atrás sozinha mesmo. Não tive tempo de ficar indo atrás de artista, essas coisas, a gente fazia 20, 30 clientes em uma noite.

– Tem alguns casos marcantes dentro da prostituição?

Esse corte que eu tenho no rosto foi de um cara que começou a pegar no meu pé na zona. E achou que era meu dono. E um dia ele foi com o chucho para enfiar na minha cara, ele me cortou e eu cortei ele.

– Mais algum?

Teve um caso muito interessante que ocorreu num ano que eu fiquei muito doente. A gente morava em um beco com vários quartos e pagava para morar ali. Elas chegavam e falavam que “que pena que eu estava doente” e iam comer no restaurante da Gatinha, que era o melhor e que fazia uma torta de bacalhau que eu adorava. Gostavam de tombar uma com a outra, sabe? Daí fui andando atrás delas e um homem bêbado veio e me agarrou. Dei um empurrão nele e ele caiu na lama. Mas quando ele caiu, meu bem, a carteira dele também caiu e estava cheia. Peguei a carteira dele e acho que tinha o 13º , o 15º e 23º. Peguei o dinheiro e fiquei tão desesperada que ao invés de ir para o restaurante, fiquei escondida ardendo em febre no meio do mato. Devia estar meia doida, né? (risos).

– Quando vocês ficavam doente, ninguém ajudava?

Uma bicha ajudava a outra, sim. Na minha época o companheirismo era muito melhor que hoje. Porque quando a gente entrava no carro a outra bicha anotava a placa do carro, prestava atenção. A gente poderia ser inimiga, mas na hora que estava batalhando, se um cara desse um tapa na cara da outra, juntava todas contra ele. Hoje, eu vejo as meninas uma fazendo ferro da outra.

– Com quantos anos você começou a transição?

Comecei a tomar hormônio logo depois de sair de casa. Perguntei para elas como elas tinham botado peito e ia na farmácia comprar o hormônio. Mas antes mesmo eu era um menino muito engraçado, porque eu tinha as pernas muito grossas, eu tinha a pele muito branca, que os homens queriam.

– Você chegou a usar o silicone industrial e foi bombadeira. O que acha sobre ele hoje em dia?

Acho um crime. Eu até fiz uma promessa para Iansã que nunca mais na minha vida eu pegava num frasco de silicone. A minha opinião sobre o silicone industrial mudou porque a última pessoa que eu bombei ela passou mal. Ela comeu demais, porque quando a pessoa bomba não pode comer muito, daí jogaram ela debaixo de um chuveiro. Ela não morreu, não, hoje em dia está até na Europa. Mas aquilo me deu um choque muito grande. Eu fiquei muito apreensiva e pensei: “essa bicha podia ter morrido e ia ficar nas minhas costas”. Não, nunca mais quero saber disso e nunca mais fiz. 

Eu sou contra porque acho que isso é uma coisa de louco. Você mexe com a vida do outro ser humano. A pessoa pode até ficar belíssima como pode morrer no momento, porque o silicone mata na hora. E outra coisa: o silicone te deixa belíssima durante 10 ou 15 anos depois começa a “mondrongar” tudo. Depois a pessoa começa a ficar com problema, sempre fica. Para mim, os médicos devem se inteirar melhor sobre isso, sobre nossas necessidades e saber que a gente tem tanta necessidade dessas transformações que, mesmo sabendo do risco, vai usar.

– Teve grande amores?

Tive vários. Quando a gente estava na zona, primeiro iam os coronéis, fechavam a zona toda, às vezes saia com uma e pagava todas. Chegou uma época em que o povo começou a falar que ia construir o tal do Tubarão, que é um porto de navio. Mais de 3 mil homens chegaram e todo mundo ficou com medo de ser morta. Mas  que nada. Cada uma casou com uns dois ou três. Eu já casei logo com quatro (risos).

– Como assim casar?

Casar era arrumar namorado, eles davam dinheiro para a gente, um se escondia do outro, um saía pela porta e outro entrava por outra… Aquele era um lugar de muita violência, mas que também trazia muita coisa boa. Eu conheci um cara do Paraná que era muito lindo e que eu fiquei um tempão até ele ir embora. Depois eu tive esse cara que ele me cortou e que eu cortei ele também. Tive um cara que eu era apaixonada por ele na zona, mas a cabeça dele era como a dos homens de hoje: ele só queria comer…

– Teve algum homem que te chamou para sair da prostituição e ter uma vida a dois?

Esse que me deu essas máquinas de costura, que me cortou e que eu também cortei. Eu conheci em Vitória. Daí ele foi para o Rio de Janeiro, montou um apartamento, eu fui morar com ele. Só que ele ficava a semana inteira em São Paulo e eu ficava lá. Só que tinha as minhas necessidades. Ele até deixava um dinheiro comigo, mas o dinheiro não dava para tudo. Eu tinha que voltar para a rua, batalhar. E eu também pegava costura para fazer, na Copa, escola de samba…

– O que você poderia falar sobre o período da Ditadura?

A polícia prendia a gente na rua, né? Quando morava uma turma de travestis, eles aprontavam mais, porque não iam apenas para prender. Iam para barbarizar, para matar, para deixar aleijada, porque eles tinham esse prazer. Agora na rua quando falavam “Os alibam!!!” saíam todas. Uma vez eu corri e me escondi embaixo de um caminhão. Um desgraçado de um pivete que estava vendendo doce falou: “moço, tem um aqui debaixo”. Até hoje eu praguejo esse menino (risos). E o prazer deles era esse: levar a gente para delegacia e lavar banheiro, ficar desfilando para lá e para cá para eles baterem. Mas a travesti negra sofreu mil vezes mais. Se tinha uma travesti negra no grupo, ela sofria mais que qualquer outra. Ela era humilhada pela cor, por tudo.

– Existiu alguma revolta diante dessa violência toda?

Não, a gente sempre foi muito conformada com isso. Até hoje as travestis e transexuais são conformadas com essa violência. Tanto que você fala para uma travesti que apanhou: “vai na delegacia e faz uma queixa”. Ela vai dizer: “não vou lá, não, não vai adiantar nada. Amanhã eu vou estar ali na rua e eles vão me matar”. Então se torna algo banal. A gente começa a sentir que a gente merece aquele castigo. A gente começa a sentir que a gente é errada. As pessoas fazem uma lavagem cerebral que a gente começa até a admitir que está errada, pois apesar de você querer aquilo e saber que é algo seu, todo mundo diz que é errado, que é pecado. É horrível ser apontada a vida inteira.

– E a história de se cortar com a navalha?

A gente era taxada com tudo o que é doença, né? Então os policiais tinham medo de quando a gente se cortava. Daí eles prendiam, a gente se cortava e eles liberavam com medo de pegar alguma coisa.

– Você chegou a ser presa muitas vezes?

Muitas. Teve uma época que a gente era presa toda semana em Vitória. Eles iam na porta da zona e botava uma na mão da outra e levava. Teve uma vez que a polícia daquele capacete branco invadiu a zona e, nossa, agrediram muito. Tinha muita menina caída na rua. Muita violência. Teve uma vez que eu não andava de tanta palmatória que recebia na mão e no pé. Mas eu te falo que às vezes você ser branca e ter uma boa aparência te safa de muita coisa. Até mesmo na violência existe isso. Volto a dizer, quando a travesti era negra ela sofria muito mais. Eu jamais apanhei da maneira que eu vi uma negra apanhar. Foi uma coisa muito degradante.

– Você já perdeu várias pessoas próximas por meio da violência. Gostaria de destacar a memória de alguma delas?

Eu perdi uma menina que morava na minha casa, de quem eu gostava muito. Ela saiu da minha casa porque arrumou um namorado, ia se casar, estava muito feliz. E na semana que ela veio me convidar para um churrasco na casa dela, ela apareceu morta. Veio falar comigo na sexta-feira e no domingo ela apareceu morta. Tiffany. Barbarizavam demais, afundaram o crânio, quebraram todos os dentes e deram muitas facadas. Ela tinha comprado um vestido na mão de uma mulher que estava em casa, era um vestido branco e ficou todo vermelho. Jogaram ela debaixo de um caminhão em Betim. Ela era uma pessoa maravilhosa dentro de casa, ela ajudava a mãe dela, toda semana ela mandava dinheiro para a mãe dela.

Na rua ela bebia um pouco e era atrevida. Se você chegasse e falasse alguma coisa para ela, ela dizia: “Eu só tenho que dar satisfação à tia Anyky e a minha mãe em casa”. E eu sei que isso incomodava. Eu acho que essa morte foi para me agredir, porque foi quando eu comecei a abrir os olhos das meninas. Porque a bicha burra dá muito mais lucro. E eu falei que elas poderiam ter conta no banco, ter direitos, mas acontece que as pessoas que matam as travestis não vão presas. E, se vão, acabam saindo pela porta da frente. Ao mesmo tempo, a travesti é presa porque foi pega com uma trouxinha de maconha.

– Você não sai mais na rua durante a noite. Por quê?

Eu já tive muita ameaça de morte. O primeiro medo que eu tive foi quando a polícia invadiu a minha casa em 2009. A minha casa tinha mais de 15 meninas na época. A polícia entrou na casa, botou a arma na minha cabeça, me humilhou de todas as maneiras… Humilhou as meninas, chutou os cachorros. E ficaram um mês invadindo a minha casa. Eles falavam que estava procurando droga e arma, mas na verdade é que eles queriam que eu fosse embora de BH, que desistisse de morar aqui. 

Teve um dia que eles invadiram a noite em casa e eu liguei para o Roberto Chateaubriand, que é advogado de direitos humanos. Ele foi lá e o policial disse que recebeu uma denúncia que tinha arma e droga. O Roberto disse que era mais de 23h e que eu poderia autorizar ou não a entrada dos policiais. Eu falei que não tinha nada a temer, mas que todos os lugares que eles forem eu vou junto. O policial militar estava com um papel na mão e o Roberto perguntou o que era, e ele disse que era o papel da polícia federal e que era para eu assinar. O Roberto questionou: “Como? Você é polícia militar e está com o papel da polícia federal para ela assinar, isso não existe?”. O policial ficou uma fera, disse que não iria entrar mais e que voltaria com um mandado para botar o pé na porta. Daí eu botei câmera na casa toda e nunca mais foram.

– É verdade que você já teve problema com os vizinhos, que não aceitavam morar ao lado de travestis?

Já vi homem deitado debaixo do portão olhando lá para dentro. Eles devem achar que a gente anda pelada, que uma come a outra, que a mãe da outra já chega e você come a mãe da outra… É como se fosse uma panela de macarrão, uma comendo a outra. O povo tem que pensar que a gente tem que lavar a roupa, que a gente cuida de cachorro, que cuida de casa, que a gente come comida. Que o sexo é uma necessidade de ganhar dinheiro. E quem fez que a travesti fosse ativa é o hétero, porque quando ela se transforma é para ser mulher. Ela não quer deitar com o homem para comer ele, não. Foi ele que fez ela fazer isso. Eu mesma sempre sonhei em me casar de véu e grinalda. A primeira vez que o homem colocou a boca na minha mala eu quase desmaiei dentro da zona (risos). Mas daí o homem oferece mil reais para ela comer ele, e ela não vai comer, sabendo que tem que pagar as contas no dia seguinte?

– Porque você acha que as pessoas ainda hoje são transfóbicas?

É muito mais fácil destruir que acolher. O preconceito é algo horroroso, uma doença gravíssima, mas todo mundo tem. Se você vê uma travesti caída na rua ou uma pessoa em situação de rua, você tem nojo. Você não quer botar a mão e quer passar o mais longe possível. Não é verdade? Mas daí você imagina que aquela pessoa caída na rua é a sua mãe. Você vai abraçar aquela pessoa do jeito que ela está ali. Não é? Você vai acolher, vai abraçar sem nojo algum e com todo o amor. Mas se for outra pessoa você vai ignorar, vai desprezar e se ninguém tiver vendo pode até fazer algo de mal para a pessoa. Eu acho que se as pessoas fossem mais solidárias e com esse olhar afetuoso tudo seria mais fácil para todo mundo.

– Você consegue identificar quem reforça essa transfobia?

O que eu vejo é as pessoas pensando: “Por que vou me juntar a você, se você é uma pessoa tão suja?”. Até toleram que nos usem a qualquer hora, mas ninguém pode ser visto com nós. E um dos motivos é porque a igreja nos abomina. Eu vejo todos os dias a igreja, agora até mesmo na TV, incitando a violência contra essa população. Mas que Deus é esse? O meu Deus é um Deus de amor. O Deus que eu conheço se revoltou, não foi com vagabundo, não foi com negro, com travesti, ele se revoltou com as pessoas que estavam usando ele para comércio, explorando a fé do outro. Mas a sociedade fecha os olhos porque eles têm muito dinheiro. Por que eles vão deixar de dar valor para alguém que tem muito dinheiro para dar valor a uma travesti que não tem eira e nem beira, sendo que a própria família colocou para fora?

Acho que a educação deve começar dentro de casa, porque a primeira violação vem dentro de casa. Mas eu acho que o grande culpado, além da religião e da falta de educação da família, é quem está no poder. Você vê que em época de eleição todo mundo beija criança catarrada, bate nas costas de todo mundo, beija negro, abraça travesti, mas depois corre léguas de você. É porque quando você se torna trans você perde todo o vínculo, porque se torna suja, porque engloba você ao sexo. E é uma hipocrisia porque todo mundo trepa, todo mundo goza. Mas só a gente é que dá. Como se o vizinho não desse. Como se a vizinha não desse. Como o filho dela não desse ou não comesse.

– Bem, já que você espera chegar nos 100 anos, o que você vai fazer nos próximos 40, 50… anos?

Vou continuar na luta, não vou desistir. Vou criar uma ong, a Trans Viver, mas não para eu ter uma ong por ego. Quero empoderar outras meninas. Militância é uó, é chato, você não ganha nada, só gasta, vai falar as mesmas coisas para as mesmas pessoas, vai participar de 20 reuniões que não vai sair do papel. Então tem que ter muita persistência e muito amor pela luta que você quer. Se eu tiver 20 meninas e eu conseguir que duas queiram botar a cara e brigar pelos direitos, eu consegui. Isso já seria uma glória.

Veja algumas fotos dos bastidores:

Paula Sandrine, Paulo Bevilacqua, Anyky Lima e Neto Lucon
Paula, Lucas Ávila, Anyky e Neto
Desenho de Paulo Bevilacqua durante a entrevista