Atletas trans levam vantagens em competição? Saiba por que isso é desculpa para ser transfóbico admin Novembro 6, 2018

Atletas trans levam vantagens em competição? Saiba por que isso é desculpa para ser transfóbico

Isabelle Neris, Tiffany e Fallon

Durante muito tempo, pessoas trans simplesmente eram invisibilizadas e impedidas de participar de competições esportivas de acordo com a sua identidade de gênero (mesmo no período de escola). Mas depois que o Comitê Olímpico Internacional autorizou que atletas trans pudessem participar de competições, eles e elas apareceram e o tema está em evidência.

A jogadora de vôlei Isabelle Neris está atraindo os olhares da mídia brasileira. A jogadora de vôlei brasileira Tiffany Abreu, que é uma mulher transexual, está sendo alvo dos questionamentos das adversárias cis italianas. Tudo porque elas estão jogando na liga feminina em pé de igualdade com as mulheres cis. 

O presidente do time adversário Torina, Fillipo Vergano, declarou: “É normal civilmente (ser mulher transexual e estar entre as mulheres cis), mas esportivamente não é normal. Porque ela é muito mais forte que as outras jogadoras”.

Em 2013, a lutadora transexual Fallon Fox passou pela mesma polêmica. E até a adversária cis Ronda Rousey se manifestou contra a sua entrada. “Cada caso é um caso, você realmente tem que ficar atendo a isso, mas no caso da Fallon Fox, eu acho que ela tem uma vantagem injusta”, declarou ao TMZ. Depois disse que Fallon poderia “cortar o pau que a estrutura óssea seria a mesma”.

Tenista Renee foi proibida de jogar em 1975

Anteriormente, em 1975, a tenista trans Renee Richards enfrentou a crítica de 25 atletas no US Open, que protestaram na USTA (Federação de Tênis nos EUA). Foi indicado um teste para saber de “sexo biológico”, mas Renee se recusou e levou o caso aos tribunais. Ganhou e em 1977 participou da WTA e ficou até 1981. 

A justificativa das críticas é de que mulheres trans ou travestis são atletas cujos corpos produzem ou já produziram testosterona em quantidade até 10 vezes superiores à de mulheres cis. E que isso daria vantagem em termos esportivos. Uma matéria do Globo Esporte, da TV Globo, chegou a comparar o resultado de homens cis que são atletas com o desempenho de mulheres cis que são atletas. 

Só esqueceram de falar sobre atletas trans. E até mesmo de atletas intersexuais. Ou de mulheres cis que tem hiperandrogenismo, condição que produz testosterona acima da média. 

ATLETAS TRANS TÊM VANTAGEM?

Os críticos também esqueceram que o Comitê Esportivo Internacional (ainda) exige que, para competir, mulheres trans ou travestis passem pela hormonioterapia (com estrogênios ou bloqueadores) e que, assim, reduzam o nível de testosterona até menos que o de mulheres cis e tornem mais aptas para competir ao lado delas. 

Nas novas diretrizes do COI, mulheres trans atletas podem competir depois de 12 meses de tratamento hormonal, passar por testes de hormônios, que devem apresentar testosterona abaixo de 10 nmol/L. Não é mais obrigatório que as atletas passem pela cirurgia de readequação sexual (genital). Mas elas devem declarar seu gênero feminino e não “mudar de ideia, por razões esportivas”, durante quatro anos.

Assim como a lutadora Ronda, tem quem defenda que a estrutura óssea e os músculos das pessoas trans não alterariam após a hormonioterapia, pois as mudanças já ocorreram durante a puberdade. Mas um estudo norte-americano chamado Race Times For Transgender Athletes, do Providence Protland Medical Center, de Joana Harper, garante que o tratamento hormonal de mulheres trans ou travestis produz um decréscimo significativo da massa muscular e da densidade óssea. 

Há uma perda drástica de velocidade, força e resistência. Isso derruba o mito da vantagem. Veja um comparativo da lutadora trans e da lutadora cis com quem ela lutou:

Harper explica que uma mulher trans que inicia a TSH costuma correr 12% mais devagar que antes. E diz que o fato de mulheres trans ser possivelmente mais altas que mulheres cis nem sempre significa vantagem em alguns esportes, como ginástica olímpica ou fisiculturismo. 

E diz que, com o nível de testosterona menor, mulheres trans podem ter até desvantagens durante as competições. Ela faz um paralelo: “Carros menores com motores pequenos podem ultrapassar carros maiores com motores pequenos”, declara a estudiosa em matéria da Vice.

Isso sem contar a transfobia que recebe da torcida e problemas de usar o banheiro feminino, dependendo do país em que for competir, o que acaba atrapalhando ou exigindo uma preocupação extra, que nenhuma atleta cis passa.

A TRANSFOBIA

Tiffany, por exemplo, iniciou a hormonioterapia com hormônios femininos desde 2014 e diz que em sua equipe é acolhida e forma uma família. A reportagem da Globo diz: “Se os hormônios estão ok? Porque devíamos excluir as atletas trans? Precisamos abrir a cabeça, precisamos falar de Tifanny”. E, assim, respeitarmos a identidade de gênero dessas pessoas e também as incluir no esporte.

Mas uma prova evidente de que a transfobia é que acaba falando mais alto que justificativas e preocupações com taxas de testosteronas, é que há atletas homens trans que passam pela hormonioterapia com testosterona e que ainda assim são obrigados a competir com mulheres cis, embora não seja a recomendação do Comitê Olímpico.

É o caso do lutador Mack Baggs, de 17 anos, que recentemente foi OBRIGADO a lutar na escola Euless Trinity, nos EUA, no grupo de lutadoras mulheres, mesmo querendo lutar contra homens, sejam eles cis ou trans. Ele continuou na competição e após vencer 53 lutas é que os técnicos de seus adversários começaram a criticar a sua presença. Sim, só após ele vencer.

O esportista trans de duatlo Chris Mosier já compete ao lado de outros esportistas cis. Ele participou do último ano do Campeonato Mundial de Duatlo e criou uma associação de atletas trans. Para ele, o ideal agora é que parem com a necessidade da hormonioterapia de dois anos, pois a hormonização deveria ser uma escolha individual do atleta, não uma obrigação para competir.

QUESTÃO ABRANGE OUTRAS PESSOAS

Embora o tema pareça abarcar somente as identidades trans, há várias e vários atletas que também passam pela mesma polêmica. Caster Semenya, uma corredora da África do Sul, teve que passar por exames a mando da Associação Internacional de Federações Atléticas.

Descobriu-se que ela, que levou medalha de ouro no atletismo correndo 800 metros, é uma pessoa intersexual, com órgãos internos atribuídos a outro sexo, e tinha hiperandrogenismo, uma condição que produz altos níveis de testosterona. Para continuar a carreira, ela teve que controlar o nível de testosterona.

Em 2013, a atleta indiana de 17 anos Dutee Chand foi proibida de competir contra outras mulheres porque também foi diagnosticada com hiperandrogenismo. Mas, no seu caso, ela se recusou a passar por um tratamento hormonal para que pudesse competir. Segundo ela, é uma discriminação ilegal contra atletas mulheres, que são “baseadas em suposições falhas sobre a relação entre testosterona e performance atlética”.

Após uma briga nos tribunais, Chand teve autorização para competir nas Olimpíadas do Rio, mas ficou na primeira rodada na competição dos 100 metros.

Caster e Dutee: avaliadas intimamente e indicadas a obrigadas a “tratamento” hormonal

A Associação Internacional das Federações Atlética quer que provas cientísticas de que atletas mulheres com hiperandrogenismo ou que sejam intersexuais tenham vantagens sobre as atletas cis e, se comprovadas, querem que supressão (diminuição) de testosterona sejam desenvolvidas. Chegaram até a cogitar que, dependendo do nível de testosterona, elas tenham permissão para competir contra os homens. 

NEM ENTRE ATLETAS CIS É 100% JUSTO

Mesmo que houvesse algum tipo de vantagem nas atletas trans ou intersexuais, organizações esportivas internacionais garantem que é impossível encontrar um ambiente esportivo 100% justo, pois em qualquer competição com qualquer atleta – seja cis ou trans – há sempre quem tenha vantagens ou desvantagens naturais.

O nadador cis Michael Phelps, por exemplo, tem um tronco gigante, pernas pequenas e flexibilidade acima da média dos demais nadadores cis. A sua especificidade natural o fez ter 28 medalhas olímpicas.

Bem como os atletas quenianos cisgêneros, que sempre são favoritos em provas de longa de distância. Eles têm pernas compridas, finas nas extremidades e equipadas com um calcanhar de aquiles largo e elástico. Combinação que permite correr mais gastando pouca energia, o que não acontece entre outros corredores cis.

Imagine Phelps ter que se adequar ao padrão de corpos para uma competição mais “justa”

Todo esse embate gira uma questão ética em relação ao esporte: obrigar que todas as pessoas sigam um padrão e que modifiquem-se para poder competir. Sendo que o esporte deveria contemplar todas as pessoas e ter como primeiro pilar a saúde integral do seu atleta. E isso inclui o direito ao corpo.

Como diz o ditado, quando um/a atleta trans entra no esporte (ou na universidade, no mercado de trabalho), muda-se a vida de um/a atleta trans. Quando várias/os entram, muda-se a vida do esporte. Que se preparem para esta realidade, corpos e pessoas.