“Atenção, atenção. É uma nova era no Brasil: Menino veste azul e menina veste rosa”. Foi essa a frase que a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, deu logo após assumir o ministério, recebendo muitos aplausos. A frase não pegou bem e, nas redes sociais, diversas pessoas se manifestaram, questionaram a preocupação frente a tantos problemas de violações de direitos humanos no Brasil e pontuaram que cor não tem gênero.
Nas redes sociais, pessoas LGBTI ou hétero cisgênero publicaram fotos e montagens com roupas de diversas cores e questionando os padrões de gênero que já estão impostos – que a ministra parece ignorar. Pressionada frente a repercussão negativa, Damares declarou que tudo foi apenas uma metáfora para combater o que chama de “ideologia de gênero”, ressaltando que “meninos não vão ser proibidos de ser chamado de príncipe”, e que “meninas não vão ser proibidas de ser chamadas de princesa”, “respeitando a identidade biológica das crianças”.
Houve quem respirasse aliviado ou minimizasse a discussão, uma vez que se viu livre do alvo ou satisfeita com a justificativa. Houve quem entendesse que, em outras palavras, Damares elegeu como inimiga uma ideia que não existe na prática, mas que cujo combate é facilmente abraçado por muitos, dado o preconceito social e coletivo sobre o estigma que suas personagens tem no Brasil: a população trans e travesti.
Para quem não sabe, a “ideologia de gênero” é uma expressão utilizada sobretudo por políticos ultraconservadores e fundamentalistas para se posicionar contra os direitos das pessoas trans e travestis. Ele se pauta no discurso de que “gênero é uma construção social”, mas ao invés de se aprofundar na discussão sobre machismos, opressões e estereótipos, diz equivocadamente e distorcidamente que o movimento LGBT, sobretudo o de pessoas trans, querem transformar em meninas em meninos e meninos em meninas. Ainda que muitas fake news tenha sido disseminadas, isso nunca ocorreu nem em discussão do movimento, nem manifestações, nem dentro das escolas, em lugar algum.
Porém, já que grande parte da população não conhece o movimento trans e travesti, já que grande parte da população tem preconceito contra essa população, já que grande parte da população tem receio de que algo aconteça com suas crianças, é muito fácil que esse discurso seja abraçado com grande êxito, sem qualquer tipo de questionamento. Em seu discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) voltou a falar sobre o combate a ideologia de gênero – algo que não existe, volto a frisar – esquecendo assim como sua ministra dos diversos problemas de educação, segurança e direitos humanos que crianças e adolescentes passam no país. Esquecendo inclusive que o Brasil é o país que mais mata a população trans e travesti em todo o mundo, em números totais, segundo a Transgender Europe.
Keila Simpson, militante da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), escreveu uma nota manifestando repúdio às declarações da ministra. Ela diz que as declarações são uma clara demonstração de sarcasmo contra o avanço das discussões sobre a diversidade de gênero e o direito das liberdades individuais, autonomia e autodeclaração, reconhecidos inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, que reconhece a identidade de gênero como uma possibilidade real, legítima e humana. ”
“Impor uma ideologia de gênero binária motivada por ideologias religiosas, nos remete a uma clara ameaça ao estado laico e o direito da população de Travestis, Mulheres Transexuais, Homens Trans e demais pessoas Trans, quem vem sendo dizimadas no Brasil, sem que o estado faça algo a respeito; e por conta dessa intolerância disfarçada de opinião, que não reconhece nossos corpos como legítimos e nos trata como seres abjetos. Abjeção essa, que permite que neguem nossos direitos de ir e vir, acesso a educação, saúde, emprego e renda, bem como o próprio convívio social. Que ratifica o ódio e institucionaliza a Transfobia ao usar estes termos enquanto agente pública do estado”.
É preciso frisar: a população trans e travesti não quer transformar ninguém em aquilo que a pessoa não é. A militância trans e travesti não atua como uma manipuladora ou influenciadora de crianças e adolescentes. Ela não tem esse poder e nem quer. Isso não existe e nunca existiu. O que esse movimento pede, na verdade, é que se uma pessoa for pessoa trans e dizer isso no seio familiar que ela seja acolhida pela família, que ela seja respeitada no gênero em que se identifica e que a família permaneça unida – e não que a expulse, cometa violência e a exclua. O que ela quer é que a população tenha direitos, assim como tem deveres. Ela quer que haja a compreensão de que o mal que existe no Brasil relativo as pessoas trans é o preconceito em cima dela, e não a luta de ela ser respeitada.
O que ocorre é que, quando falamos e respeitamos as pessoas trans, falamos sobre gênero – tema que o movimento conservador tanto teme e evita. Isso porque, ao falarmos sobre gênero, diversos estereótipos passam a ser questionados e muitos caem por terra. É justo que mulheres ganham menos que homens? Ser homem e mulher na sociedade é simplesmente ter pênis e vagina? Mulheres necessariamente são submissas? Homens são proibidos de usar rosa ou brincar de boneca, por quê? Por que os banheiros são divididos por gênero? Mulheres não podem ser exemplo de força e luta? Homens podem ser sensíveis? Mulheres precisam necessariamente ser bela, recatada e do lar? Homens ser drag queen e não sofrer preconceito? Ou seja, questões que podem mostrar que gênero – e não confundam com genital – é uma construção social.
Em entrevista, Damares diz que os direitos LGBT que já foram conquistados serão mantidos. Em outro momento, disse que ninguém nasce LGBT, no sentido de que todos são héteros cisgêneros. Posteriormente disse que há travestis capacitadas no mercado do sexo. E também que é “terrivelmente cristã”. Houve quem respirasse aliviado, principalmente por ela mencionar que teve uma reunião com alguns militantes LGBT durante a transição e que decidiu não mexer sequer nos cargos que já estavam ocupados. Houve quem entendesse o recado mais que explícito: não há expectativa de avanços no governo Bolsonaro, sobretudo quando o assunto é a população trans e travesti.
É possível que haja alguma mudança? Talvez. Não por livre e espontânea vontade dos representantes, que mais uma vez recorrem ao preconceito social para atrair ou minimizar a opinião popular, mas por força da militância, manifestações e do ativismo, tão demonizados por Bolsonaro. Para a cientista social Leona Wolf, trata-se de um jogo de narrativa e poder. “É um jogo de narrativa e poder. Se a gente não ganha na narrativa, a gente é massacrada pelo poder”. No caso, Damares faz tais declarações de cores vestindo diversos modelitos azuis.
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