Por Neto Lucon
Toda vez que Leona Marques Bündchen, de 22 anos, se apresenta como engenheira de petróleo, percebe que a reação das pessoas é de espanto. A transfobia e a consciência de que uma mulher trans só serve para as esquinas estão expressas nos rostos. Mas ela continua: “também sou professora de química”.
Formada no último ano pela UniSantos, litoral de São Paulo, Leona pode ser a primeira mulher trans a ser engenheira de petróleo do Brasil. Pelo menos a primeira que esteve dentro da universidade vivenciando a identidade mulher trans e que topou falar publicamente sobre sua trajetória.
Ela nasceu em Poços de Caldas, Minas Gerais, e atualmente mora em Santa Catarina, onde dá aulas de química em duas escolas estaduais. O espaço respeita a sua identidade de gênero, nome social (ela ainda não retificou a documentação) e valoriza seu profissionalismo. Com os/as estudantes a afinidade é natural, sem que haja a necessidade de falar sobre o assunto.
Em entrevista exclusiva ao NLUCON, Leona fala um pouco sobre o curso, a profissão, sala de aula, transfobia, o processo de autoaceitação e a luta para seguir os seus sonhos. Agradecemos imensamente a confiança dela em nossa página, que marca a nossa volta em grande estilo.
– Você se formou em Engenharia de Petróleo na Unisantos. Como foi que se interessou por essa área?
Sempre me interessei bastante por química, tanto que hoje em dia trabalho como professora da matéria. Achei que seria algo interdisciplinar em que eu poderia relacionar a engenharia com a química. No começo fiquei em dúvida entre engenharia química e a de petróleo, mas acabei escolhendo a de petróleo devido às propagandas sobre o pré-sal na época, em 2012. (o pré-sal é uma área de reservas petrolíferas que fica debaixo da camada de sal, formando uma das várias camadas rochosas do subsolo marinho).
– O que faz uma engenheira de petróleo?
E engenharia de petróleo é um ramo que pode ser muito bem explorado. Desde áreas como geofísica e a geologia para possíveis descobertas de reservas naturais até processos de perfuração e completação para colocar um poço em produção.
– O que achou mais interessante no curso?
A geologia. Saber que aquelas rochas passavam por um processo de transformação constante devido as ações da natureza, como o intemperismo. Essas transformações me faziam ver um pouco da matéria na minha própria transição. Parece algo banal, mas ao ver aquelas rochas sentia uma paz interior muito grande.
– Qual tema foi o seu TCC?
Indústria bélica na engenharia de petróleo.
– Na Engenharia de Petróleo há a presença de mulheres? Como foi ocupar esse espaço sendo uma mulher trans?
Há poucas, mas esse cenário está mudando lentamente. No último ano de faculdade havia mais calouras mulheres que na época que entrei. Desconheço outra trans na própria universidade. Acredito ser a primeira trans engenheira de petróleo do Brasil. Eu me assumi durante a graduação, no terceiro ano, sexto semestre.
– Poderia falar um pouco como foi esse processo? E como a universidade lidou com a questão trans?
Foi um pouco difícil, pois tudo o que é diferente causa certa estranheza. Lembro quando fui com as unhas pintadas e com as roupas que a sociedade julga como feminina. O pessoal chegava a rir. Em relação à administração da faculdade não tenho do que reclamar. Respeitaram meu nome social na chamada, no portal e sempre me trataram com bastante carinho. Acredito que as roupas estão aí para usarem, não existe roupas de homem ou de mulher.
– Em algum momento, por conta dos risos e reação dos colegas, pensou em abandonar o curso?
Era uma mistura de sentimentos que até hoje não sei explicar. Ao mesmo tempo que pensar em desistir, isso tudo me dava mais forças para lutar. Ganhei a bolsa 100% pelo PROUNI, não havia a possibilidade de desistência, já que não teria condições de pagar. Então não me restou outra opção. Era lutar ou lutar. Mas, por mais que às vezes a transfobia passe desapercebida, eu nunca tive a minha inteligência ou habilidade questionada. Modéstia à parte eu sempre fui uma pessoa responsável e que me dedicava bastante.
– Apesar de você ter exposto a mulher que é dentro da faculdade, você já tinha consciência de que era uma antes. O que te impediu de falar anteriormente?
Antes de você se assumir, você precisa se aceitar. Embora eu tinha certeza da minha identidade, eu ficava muito receosa. Ninguém quer passar pelo preconceito de ser trans. Tinha medo da reação das pessoas ao meu redor. A falta de dinheiro também foi um empecilho, já que dependia da minha mãe para me sustentar. Pensava no guarda-roupa que teria que renovar e principalmente nos hormônios.
– O que deu o empurrão que você precisava para finalmente dizer ao mundo que é uma mulher?
Eu não aguentava mais fingir ser uma pessoa que não era. Antes de me assumir trans, eu tive depressão. Revelar a mulher que sou para a sociedade era o único remédio que melhoraria.
– E melhorou?
Posso dizer que é a melhor sensação do mundo poder dizer quem você é. É óbvio que além da transfobia havia muito machismo. Percebi que havia olhares, desrespeito até mesmo gritos de gostosa em lugares de aglomerados de homens por onde passava. De início, isso me fez ficar um pouco intimidada.
– Sendo uma mulher trans, o que as pessoas falam quando você se apresenta e conta que é engenheira de petróleo?
Elas se assustam. A primeira reação é de espanto. Acreditam que, se a pessoa é trans, ela necessariamente faz programa. Já vieram nas minhas redes sociais e perguntaram se eu trabalhava na rua. É nessa hora que somos obrigadas a ser militantes e que temos que dizer que estamos em outros lugares, além daquele que a sociedade quer. Bato no peito e falo que tenho ensino superior, que sou professora e que fui aprovada em seis universidade com 17 anos. Depois de mostrar para essas pessoas que não somos o que elas acreditam que deveríamos ser, eu bloqueio (risos).
– Hoje você é professora de química. É a área que gostaria de atuar?
Eu me redescobri. Por mais que eu gostasse das matérias básicas da engenharia, eu não me encontrei tanto no curso. Hoje posso dizer que sou muito feliz no meu trabalho. Dou aulas em duas escolas na rede estadual do estado de Santa Catarina. Penso até em fazer mestrado para lecionar em universidades.
– Como é a sua rotina em sala de aula?
Acredito que não tem rotina, pois é bem dinâmica. Às vezes são experimentos, às vezes aulas tradicionais em lousas, em outras com Datashow. Varia de conteúdo para conteúdo. É bem tranquilo, gosto bastante de lecionar.
– Na escola, houve alguma conversa sobre a questão trans?
Sou uma professora como as outras tantas e no ambiente de trabalho sou uma boa profissional. Como não tenho o nome retificado, as secretarias dos dois colégios sabem, sim, que sou trans. Ambas as escolas respeitaram integralmente meu nome social. Como professora, não comentei a respeito, porque eles estão ali para avaliar a profissional que eu sou e não minha identidade. Tenho muitos alunos nas minhas redes sociais, provavelmente sabem sim, mas nunca comentaram sobre.
– O que ainda hoje a gente precisa falar sobre pessoas trans para desmistificar a imagem preconceituosa que a população em geral tem sobre elas?
Por detrás dos hormônios, do silicone, existe uma pessoa ali e precisamos respeitar.
– O que diria para as travestis, mulheres e homens trans que gostariam de entrar nessas áreas que você ocupou? Tem alguma dica?
Sonhem! Nunca parem de sonhar. Quando sonhamos, pode aparecer qualquer obstáculo, jamais desistiremos. Confiem mais em si mesmos. Sabemos que para nós é tudo mais difícil, mas somos criadores da nossa própria história. Não abandonem jamais os estudos pelo preconceito, porque podem tirar tudo de nós, mas o conhecimento fica. É isso.
– Hoje qual é o seu sonho?
Continuo buscando minha felicidade. Sempre estarei em busca de ser mais feliz do que hoje. As melhores coisas não são coisas.