O remake de Cavaleiros do Zodíaco, que será exibido em 2019 pela Netflix, causou polêmica na última semana devido a uma novidade anunciada no CCXP 2018: o personagem Shun de Andrômeda deixará de ser um homem cis sensível, pacifista, com feminilidade e armadura rosa para se tornar uma mulher cis na nova versão, a Shaun.
A mudança causou debate entre os fãs, que em sua maioria manifestou insatisfação. Tanto que o roteirista Eugene Son teve que se explicar no Twitter. De acordo com ele, a ideia de mudar o gênero de Andrômeda surgiu pelo incômodo de os protagonistas serem todos homens e uma maneira de trazer representatividade feminina, uma vez que poderia fazer poucas mudanças na nova versão.
“Trinta anos atrás, um grupo de caras combatendo para salvar o mundo, sem nenhuma garota por perto não era raro. Era o padrão. Hoje em dia, o mundo é diferente. Caras e garotas lutando lado a lado é o padrão. Estamos acostumados a ver isso. Certo ou errado, se mantivéssemos um time só de caras, o público poderia ver como uma sentença política da nossa parte”, declarou.
Ainda que a representatividade seja uma pauta da população LGBT. negra e de mulheres, ela não diminuiu o descontentamento. Mas não se trata de uma crítica de cunho saudosista ou politicamente incorreta que fãs fizeram quando os remakes deixaram She-Ra nada sexualizada ou Popey plantando espinafre orgânico. Neste caso, as críticas se dão devido à mudança específica de Andromeda, o único protagonista que trazia em sua personalidade a feminilidade ou uma masculinidade subversiva – muitas vezes sendo referido pelos fãs como personagem LGBT, ainda que fosse hétero cis.
Sendo assim, transformá-lo em mulher cis seria romper com um personagem que contribui na desconstrução de estereótipos de gênero dentre os cavaleiros machões, e deixar tudo dentro dos moldes já esperados socialmente. Confira as reflexões:
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Fã confessa da série Andreza Moras, de 27 anos, declara ao NLUCON que “detestou” a mudança. “Não por terem mudado o gênero de um dos cinco, mas pelo fato de ter sido o Shun, justamente o personagem que mais fugia do clichê de masculinidade”. A administradora Laura Zanotti, de 29, concorda e defende que a decisão foi equivocada, pois se o objetivo era trazer uma personagem mulher entre os protagonistas homens, ela acabou apagando um personagem hétero cis e sensível, que feria a masculinidade frágil de muitos homens.
A designer de interiores Patricia Castro, 38 anos, diz que a escolha de Shun para se tornar mulher, e não qualquer outro cavaleiro, não foi por acaso. Para ela, tem uma questão ligada a estereótipos e a preconceitos, uma vez que acham que toda pessoa afeminada é gay, e que todo gay quer ser mulher. “Bola fola. Só alimenta mais estereótipos. Acham que nós somos como Pokemóns que evoluem. Ou seja, o Shun é tão afeminado, mas tão afeminado que evoluiu para mulher”.
O auxiliar terapêutico Masao Hikaru, 48 anos, diz que, apesar da visão ocidental dizer que Shun é um personagem fraco, na verdade ele é um dos mais poderosos. “O personagem demonstra isso algumas vezes – inclusive dando um cacete no Saga de Gêmeos. É um poder tamanho que só uma pessoa mais centrada e pacífica pode lidar. Mas, pros padrões ‘ocidentais’ é muito “viadinho”. Eu acho que tem mais relação com ele representar aquela masculinidade que os homens hétero tem muito medo, do que dar representatividade pras mulheres. Que, convenhamos, transformar um homem tido como ‘viadinho’ em mulher não é mérito algum, pelo contrário”.
Já a jornalista e assessoria de imprensa Victoria Hope, de 26 anos, informa que a mudança está longe das justificativas mencionadas. “O novo anime está sendo produzido na China, que recentemente criou uma lei para tornar todo e qualquer material LGBT proibido, então então diferente do que muitos brasileiros estão achando, Shun não se tornou mulher pra trazer representatividade. A equipe da série simplesmente fez isso para apagar qualquer traço de ‘homossexualidade’ que poderia ser percebida no personagem”.
Ela frisa que a nova personagem é ruim por reforçar duas ideias preconceituosas: “O primeiro é que gays afeminados querem ser mulheres. E o segundo que mulheres são frágeis, só choram e são apenas delicadas donzelas. Na série original, Shun só sofre, é extremamente chorão e isso era suficiente para fanboys falarem que ele era ‘mulherzinha’, frase que por si só já é transfobica e misógina ao mesmo tempo e apenas reforça que mulheres devem ser obrigadas a ser delicadas e performar feminilidade. Ou seja, ninguém tá feliz e quem está feliz, está feliz na inocência de achar que produtor chinês quis acrescentar representatividade”.
Andreza acredita que a decisão pode ter sido meramente comercial – e não em prol da representatividade feminina, como foi divulgado – pois os produtos do Shun historicamente sempre tiveram vendas inferiores ao restante. Vale lembrar que recentemente, quando a C&A lançou as camisetas dos Cavaleiros, o único personagem que não ganhou a sua própria foi Shun. “Daí transformar ele em mulher seria uma forma de converter o menos lucrativo em atrativo do público feminino”.
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A professora Danye Oliveira e a vendedora Roberta Conrado, 30, gostaram da mudança de sexo/gênero da personagem e se apoiam na justificativa do diretor. “A equipe de roteiro pensa sobre colocar uma personagem feminina. Querem dar mais ênfase a uma mulher no papel de cavaleira. E a partir daí desenvolver mais com a relação com os outros personagens”, diz Danye.
A militante e taróloga Morgana Pereira diz ser fã do desenho, mas não é fanática ao ponto de achar um sacrilégio mexer no ídolo. “Alias, acho mais um sinal de masculinidade frágil. Mesmo as coisas que podem custar mais caro para mim podem ser apresentadas com uma nova versão sem problema, principalmente em se tratando de gênero. Acho interessante versões femininas de alguns heróis”.
É o que também pensa a estagiária da diretoria de Políticas para População LGBT, da Prefeitura de Belo Horizonte, Rhany Merces, de 28 anos. Ela diz que, para além de qual personagem tenha mudado, é importante que haja personagens mulheres. “Quando eu era criança nenhuma amigo queria ser o Shun, todos faziam deboches e piadas por ele ser afeminado. E agora vem fazer escarcéu porque o personagem é mulher? Não venham com desculpa de saudosismo para disfarçar o machismo. Até que enfim as mulheres têm espaço no Cavaleiros do Zodíaco para fazer mais que chorar, ser uma vítima frágil e rezar”, afirma.
Masao pondera que há diferenças entre os apontamentos. “Uma coisa é população LGBTQI pontuar e protestar (com razão) que tiraram o único cara com comportamento masculino diferenciado, tanto que era chamado de viado pela grande maioria dos fãs da série, pra transformar em mulher. Muito tóxico isso. Outra coisa é esse bando de homem nerd escroto machista que chamava ele de viadinho nos anos noventa, agora pagar de desconstruidão só pra criticar, usando o argumento que a gente usa, de retirar a masculinidade diferenciada. Isso é muita hipocrisia”.
ALÉM DE SHUN, QUEM PODERIA SER?
O roteirista disse que existiu a possibilidade de criar uma nova personagem ou transformar personagens mulheres já existentes na série original em Cavaleiros de Bronze. Mas defendeu que seria “óbvio” e que seria a única personagem que não estaria no material original. “Os conceitos básicos da personagem são os mesmos. Ela usa as suas correntes para se proteger e proteger os seus amigos, algo que aprendeu com seu irmão superprotetor, que também a ensinou a lutar”.
A assistente social e DJ Lirous K’yo Fonseca, de 36 anos, diz que a mudança promove o apagamento de uma identidade para legitimar uma higienização. Ela afirma que há vários personagens dentro da série que poderiam tranquilamente oferecer a representatividade feminina. “Qualquer outro personagem poderia se tornar mulher. Andrômeda representou muitos LGBTs em um momento em que se falar sobre identidades e sexualidade era proibido entre os mais jovens”.
Patricia diz que nada impediria que eles explorassem melhor as personagens Amazonas ou tivessem criado uma nova personagem. O mesmo pensa o psicólogo Dario Duarte, de 31 anos, que opina que as Amazonas poderiam ter mais espaço na nova versão. “Elas são personagens muito interessantes e aprofundáveis, e também mais protagonismo à Saori, trazendo-a mais para a ação. Achei ruim transformar o homem delicado numa mulher. Óbvio e rasteiro”.
Diego de Soutto defende que o cavaleiro que poderia ter se transformado em mulher, sem alterar a coerência dentro do universo do desenho é Hyoga. Ele explica: “Seya é o protagonista, ficaria difícil mexer no gênero dele sem reescrever toda a história. Ikki é grosseirão e masculinidade tóxica dele é elemento forte na história. Shiryu é o único com namorada na história e creio que haveria polêmica no mercado conservador trazer uma personagem lésbica. Hyoga poderia ser a melhor das decisões, porque alteraria quase nada no plotar de sua história, que gira em torno de sua mãe”.
Por fim, o maquiador Ti Santine, de 36 anos, acha positivo que Shun seja mulher no remake, mas diz que seria ótimo se alguns fossem declaradamente gays, lésbicas e trans – já que a intenção é trazer representatividade. “Lembro que sempre teve rumores de que os textos eram reeditados para esconder algumas situações de romance entre os personagens em Cavaleiros do Zodíaco. Vivi uma vida inteira como gay e hoje em dia que me permito ser mais feminino, recordo que personagens como o Andrômeda, Afrodite de Peixes e Mystis… Nesta época, estes programas me faziam sentir que havia uma certa aceitação neste mundo de mangás que não havia na maioria dos desenhos”.
E, você, o que achou da mudança da personagem?