Por Neto Lucon
Não é de hoje que o Brasil carrega o mito de ser um país cordial à diversidade e exemplo de democracia racial, sexual e de gênero. Mas quem faz parte de grupos historicamente marginalizados, explorados, agredidos (e tidos como minoria) sabe bem o abismo que existe entre a falácia do pensamento pró-diversidade e a realidade repleta de fobias.
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E, em toda a sua complexidade, nem sempre um indivíduo sofre apenas uma opressão. Há mulheres que, além de enfrentarem a misoginia, enfrentam o preconceito de classe. Há homens, que além da homofobia, enfrentam o racismo. Há travestis que, além da transfobia, sofre preconceito religioso. Dentre muitas outras opressões interseccionalizadas e estruturais.
O professor de educação física Leonardo Peçanha é homem trans e negro. E sabe, por meio de sua vivência e militância – ele atua no TransRevolução, Fórum Nacional de Pessoas Trans Negras e no Instituto Brasileiro de Transmasculinidades – que é extremamente necessário mostrar as variantes das opressões. E a necessidade de interseccionar os discursos.
Uma das iniciativas mais recentes da qual faz parte é o coletivo de Negros Blogueiros – com três homens negros trans e três homens negros cis – que abordam temáticas da masculinidade negra e transmasculinidade negra, dialogando com temas como gênero, sexualidade, classe e raça, buscando sempre a perspectiva interseccional.
Leonardo conversou com o NLUCON há alguns meses e falou sobre tudo isso. Iniciamos o bate-papo comentando sobre a repercussão nacional referente as ofensas de cunho racista que a jornalista Maju Coutinho e as atrizes Taís Araújo, Cris Vianna e Sheron Menezes receberam nas redes sociais. Confira:
– A repercussão frente as ofensas racistas que as estrelas da TV Globo receberam deu a impressão de que as pessoas estavam surpresas e redescobrindo o racismo. Em sua opinião, há resquícios de racismo ou se trata de um preconceito ainda latente?
Existe o mito no Brasil de que o racismo acabou, mas as pessoas que são negras e que vivenciam a sua negritude diariamente sabem que isso é mentira. O racismo é estrutural e continua forte. Ele atinge de uma maneira global as pessoas que são negras. Aqui o racismo existe de diversas maneiras e as pessoas pensam que é velado, mas quem sente sabe que não é. Isso é o que querem que a gente acredite. Há desde o racismo simbólico – que as pessoas tendem a achar que não é racismo – até o homicídio, que as pessoas sofrem agressão física e morrem só pelo fato de serem negras, racismo institucional e diversas maneiras onde o racismo pode aparecer.
– Uma maneira de sensibilizar é relatando as experiências. De qual maneira você sente o racismo no seu cotidiano?
As pessoas me leem como uma ameaça apenas por ser negro. Eu entro em uma loja e vejo as pessoas cochichando. Quando eu entro em determinado lugar, as pessoas ficam me olhando e eu sei porque elas estão me olhando: é porque não era para eu estar ali naquele lugar, porque eu sou negro, apenas por esse motivo. São marcas do processo de escravidão, onde até hoje racismo atinge as pessoas negras de diversas maneiras. Quando eu estou com minha namorada Leila Dumaresq, é quase uma revolução na rua. Porque além de nós sermos trans somos um casal inter-racial. Eu sinto que incomodamos as pessoas, como se eu não pudesse estar com ela.
– Como você lida nestas situações, cujo preconceito às vezes aparece nas entrelinhas?
Pois é. Depende da situação, mas geralmente eu ignoro quando se trata de “piadinhas”, olhares e uma questão subjetiva de percepção. Se eu revidar pode acontecer uma violência pior, mas dependendo do caso eu tomo alguma atitude sim. Uma vez eu estava com a Leila e umas amigas dela na farmácia e um dos atendentes ficava o tempo todo atrás de mim. Foi uma coisa tão constrangedora que eu tive que virar e perguntar: “está acontecendo alguma coisa?”. Ele falou que não, mas continuou com o rádio e as outras pessoas também ficaram de olho em mim, como se eu fosse fazer alguma coisa.
– Da sua experiência, de qual maneira a transfobia e o racismo se relacionam?
Existem, sim, maneiras de xingamentos que sejam direcionadas para uma coisa ou para outra. Mas quando uma pessoa é transfóbica comigo, ela é racista também. E quando ela é racista, ela é transfóbica, porque está na intersecção de opressões que perpassa a minha vivência. Então, não tem como dizer: “Ah, naquele momento eu sofri racismo e naquele outro transfobia”. Não consigo separar a discriminação, porque estão muito juntas, relacionadas e direcionadas a mim, que sou homem trans e negro. O que posso dizer é que hoje eu sou lido pela sociedade como homem, não necessariamente homem trans, mas não tenho como esconder a minha cor de pele. E nem quero. Se uma pessoa negra já sofre preconceito, uma pessoa trans e negra sofre o preconceito de raça, classe e transfóbia.
– Você já foi lido pela sociedade como mulher negra e agora é lido como homem negro. Consegue perceber a diferença de racismos ligados ao gênero?
Com certeza. No meu caso específico, isso fica bem enegrecedor. Quando eu era lido como mulher negra, antes da minha adequação, eu sofria outro tipo de preconceito e de racismo. As pessoas tinham uma leitura que hipersensualizava e objetificava as mulheres negras – é claro que a mulher em si é objetificada, mas no caso da mulher negra há uma objetificação específica – que tem que ser a gostosona, a passista, a que sempre tem que servir ao homem, com determinado padrão de corpo, resquícios relacionados ao processo de escravidão também estão aqui e toda maneira de preconceito racista tem essa ligação.
Mas depois que eu fiz a adequação e eu passei a ser lido como homem negro pela sociedade, o racismo mudou. Mesmo que exista o privilégio por ser homem, senti e sinto, que o homem negro é visto como o bandido, aquele rouba, que é marginal, que é ameaça e ameaçador, que é visto como uma virilidade inquestionável e a ligação cultural com o falocentrismo. Ou seja, enquanto homem negro trans, eu deixei de ser objeto para ser ameaça.
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– Da sua construção como cidadão e militante, veio primeiro a consciência de que é um negro ou um homem trans?
A primeira consciência foi de que sou um homem trans. Até porque só percebi que estava sendo lido como homem quando sofri racismo. Foi a vez em que eu entrei no ônibus – não havia feito a cirurgia ainda, usava o binder – e eu percebi que uma senhora que estava no corredor foi para a janela. Conforme eu passei pela roleta e fui andando, ela tirou a bolsa de um lado e passou para o outro. Aí eu fiquei olhando: “o que está acontecendo que ela está acuada? Ninguém fez nada”. Sentei no banco atrás dela e continuei sem entender. Só quando cheguei em casa, a ficha caiu: “é porque eu sou negro”.
E me dei conta que estava sendo lido como homem, e como homem negro. A criação que as pessoas recebem ainda é branca, onde as pessoas negras muitas das vezes não tem um referencial, e nesse sentido muitas pessoas acabam não se vendo ou se reconhecendo com uma pessoa negra, com o tempo o reconhecimento começa aparecer e muitas das vezes de uma maneira cruel, vem junto com o racismo.
– Ainda nesta questão de consciência. Poderia me contar um pouco sobre a questão trans e a infância?
Desde criança eu sempre fui muito masculino, nunca gostei das coisas “ditas femininas”. A minha família não gostava muito, mas nunca me proibiu. O meu pai, que foi atleta e jogou futebol durante um tempo, me levava para jogar bola, me ensinou a soltar pipa… E aquilo de alguma maneira me ajudou. Quando eu fiz 18 anos, eu decidi que não iria botar mais roupa feminina porque me fazia mal. Eu me entendia como uma mulher masculina e que era lésbica, porque era a caixinha da sexualidade que mais se aproximava. Hoje entendo que, ao contrário da minha identidade, a minha sexualidade foi entendida muito cedo, que foi a minha afetividade às mulheres.
Eu não me sentia aquela mulher que a sociedade e família esperavam, mas ao mesmo tempo não sabia o que era, não tinha referência do que é um homem trans. Até que entrei na graduação em Educação Física e um professor do quinto ano me apresentou aos Estudo de Gênero na Educação Física Escolar, Esporte e Lazer. Comecei a entender que a minha questão não da sexualidade. Depois que terminei a graduação, fiz uma pós, especialização, em gênero e sexualidade, e entendi melhor o que eu sou.
– E o que fez depois? Já iniciou o processo de transição de gênero?
Eu prefiro falar “adequação de gênero” ao invés de “transição”. Mas, não iniciei, ao contrário. Eu me retraí muito, porque não sabia como a minha família e os amigos iriam lidar. Me fechei demais. Só que chegou um momento que quis saber se era isso mesmo. Fui ao encontro do João Nery, no Grupo Transrevolução, em março de 2012, e depois da fala dele, parecia que estava escutando a minha própria vida. Percebi, por exemplo, que já escondia o meu peito desde quando ele começou a crescer. Eu colocava uma camisa, colocava o sutiã, dois tops e eu nunca achava bom. Mas também não entendia porque não achava bom. Hoje, depois que eu fiz a adequação, muitas roupas continuam as mesmas, só que acho que agora elas ficam bem melhor.
Depois do encontro com o João Nery, conheci várias pessoas como eu e vi que eu era como eles e iniciei o processo de adequação de gênero dentro do mestrado. Costumo dizer que comecei o mestrado uma mulher negra e saí um homem negro, única pessoa negra em minha turma. Eu já não aguentava viver daquele jeito, porque parecia que eu estava vivendo de mentira. Em junho daquele mesmo ano, comecei a reposição hormonal.
– Um dos seus medos era de não ser bem aceito pela família como trans. Como ela lidou?
A minha mãe faleceu há 17 anos, eu não tenho vínculo com o meu pai. Tenho contato com uma tia, que mora comigo, o meu tio, que mora com a família dele, outra tia, que mora na casa dela. O meu núcleo familiar são essas pessoas. E essas minhas tias são muito tradicionais. Eu tive essa preocupação: como é vou explicar para elas? Daí tive a estratégia de falar: “olha, vou ao médico e vou começar a tomar hormônio, porque eu me identifiquei com as questões trans e eu acho que sou uma pessoa trans, quero ficar bem com o meu corpo”.
As minhas tias ficaram preocupadas: “Não vai complicar a sua saúde?”. E eu: “É por isso que estou fazendo com um médico”. Elas também não entenderam muito bem. Comecei a mandar vídeos, reportagens, o livro do João. Aos poucos foi indo e não tenho problemas com a minha família. Tanto que minhas tias acompanharam nas cirurgias que eu fiz. Mas entendo que para as minhas tias foi difícil também. Eu entendo que para as famílias é difícil também, porque viu a gente nascer, e espera que a gente vá ser de uma maneira e que a gente não é. Isso causa um sofrimento neles, por criam uma expectativa que não deveria existir.
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– O que você diria para os meninos que querem contar para a família?
É difícil dar alguma dica porque cada família é uma família. A minha estratégia deu certo. Tem famílias que também pode dar e outras que não. É bem difícil opinar, porque há famílias que não vai haver diálogo. Mas o que eu sempre falo é para as pessoas irem comendo pelas beiradas. Dizer: “sabe essa pessoa aqui…”, “dá uma olhada nesta reportagem…”, colocar num programa que fale sobre o assunto, levar uma pessoa para conhecer. Não tem receita de bolo e tudo isso pode não dar certo. Mas, independentemente da estratégia, chega um momento em que a gente vai abrir o coração para o pai ou a mãe e a gente mesmo é que vai sentir da maneira como vai fazer isso.
– O mercado de trabalho muitas vezes é palco para a transfobia. Você conseguiu trabalhar na área de Educação Física?
Trabalhei em três academias antes da minha retificação. Comecei a adequação quando estava no meio do mestrado e o interessante é que a minha especialidade é na parte aquática. Eu dava aula de natação e hidroginástica. Então, chegou um determinado momento em que eu tive que parar de aula, porque trabalhava de maiô e começou a crescer a barba. No início, quando eu trabalhava com natação-bebê, uma criança de quase dois anos chegou e disse: “titio, titio”. E a mãe ficou vermelha e disse: “É tia, filha”. Depois, com oito meses de hormônio, fui substituir uma professora em outra academia e uma criança de 10 anos perguntou: “Tio, você é homem ou mulher?”. E eu respondi: “O que você acha?”. E ela respondeu: “Eu acho que a senhora é tio”. “Então, tá, é tio”. E todas as mães ficaram olhando e todo mundo começou a me chamar de tio.
Sempre cito essas experiências para falar que o problema não está nas crianças, está nos adultos. Optei por parar depois do mestrado, em que sofri transfobia institucional, não gosto de falar sobre isso mais. Também parei porque tenho minhas tias que puderam me ajudar e eu reconheço esse privilégio, até por isso pude entrar no ativismo e me dedicar com mais calma. Mas esta não é a realidade de outros homens trans. Estou voltando ao mercado de trabalho aos poucos.
– Na revista Time, que teve a capa da Laverne Cox, a reportagem diz que depois da questão racial e da homossexualidade é a transexualidade o assunto da vez. Como você avalia a abordagem da mídia sobre as questões trans?
Existem, sim, avanços de pessoas como você que desenvolve um trabalho bacana. Mas a mídia tem falado sobre LGBT em geral porque dá ibope. Eles sabem que é um assunto que chama a audiência. Mas não é informativo e não tem a intenção de querer explicar nada. É muito fácil colocar uma pessoa trans lá, mas não respeitar nem o nome social desta pessoa. Tem muita gente que faz um trabalho que abre margem para que os fundamentalistas nos usem. Daí as pessoas falam: “olha lá, é o travesti”, fala o nome de registro e acaba mais prejudicando que ajudando.
– Alguém que te representa na mídia?
A minha representação é mais no âmbito do político, então falo do Luciano Palhano (coordenador do Ibrat; foto). Não só porque ele é meu amigo, mas porque vejo o trabalho que ele faz. Vejo que algumas pessoas até querem se fazer representar, mais ainda não tem o amadurecimento político, para fazer essa representação do grupo. Gosto muito também do Prof Guilherme Almeida, que também é meu amigo.
O que pensa sobre a visibilidade do Thammy Miranda?
Ele tem uma boa visibilidade, que é dada. Ou seja, ele não buscou essa visibilidade, que nós do movimento social buscamos, ele ganhou. Penso que, além da visibilidade, ele precisa amadurecer o discurso político, como todo mundo precisa. Eu também preciso fazer essa formação política, que é algo diário. Ele até pode dizer que representa os homens trans, porque é um homem trans, mas politicamente ainda falta o amadurecimento para representar o coletivo no campo do político. O que percebo é que a mídia utiliza de algumas pessoas que fizeram algumas modificações corporais e as colocam como homens trans, sendo que elas não se entendem assim.
– Neste caso, você está falando da Tereza Brant?
Estou. Bom, sempre digo que a Tereza pode fazer o que quiser com o corpo dela e se identificar como quiser. Sou a favor de termos autonomia de nossos corpos. O problema é que ela não tem o cuidado de dizer que está falando apenas dela, e não por um coletivo. E daí parece que todo mundo é como a Tereza, todo mundo é como o Miranda, todo mundo é como Luciano ou como o Erick. E não é, porque cada vivência é diferente. É preciso dizer: “Eu sou fulano, sou assim, quero fazer isso, mas isso tudo sou eu, não é todo mundo”. Parecia que ela falava de um jeito que todo mundo era como ela. A gente começou a receber reclamações de meninos, cujos pais começaram a dizer: “A lá, a Tereza não quer mudar o nome, você não precisa disso”. Mas existem meninos que querem mudar e ela não se preocupa em falar sobre eles. E isso acabou naturalizando a transfobia da família desses homens trans.
– Os homens trans ainda sofrem de grande invisibilidade. O que as pessoas precisam saber sobre o grupo?
Essa invisibilidade não é por acaso. As lideranças de homens trans que existem hoje no Brasil são negras. Quando não são negras, tem o recorte de ser nordestino, idoso, gordo ou com alguma deficiência. E quando há visibilidade na mídia, fica parecendo que todos os homens trans tem o padrão cis ou que querem ter o padrão cis, o que é uma mentira. Ainda falta referências na mídia. O livro do João ajudou porque deu visibilidade, tem o livro do Jô Lessa e tem a tese de doutorado da Simone Ávilla. Mas a maioria das pessoas sequer tem educação de qualidade ou acesso à informação.
Tanto que, quando vou explicar para alguém que sou homem trans, tenho que dizer: “Você sabe o que é uma travesti? Eu sou o contrário dela”, porque senão elas não entendem. Mesmo sabendo que não é assim, quando é preciso, falo dessa maneira para ilustrar. A sociedade ainda acha o cúmulo uma pessoa que foi socializada como mulher cisgênera fazer uma “transformação” e ser um homem, sendo que socialmente é preciso ter um pênis para ser homem. Se torna algo super biologicista, mas é o que as pessoas pensam. Existe também o mito de que homens trans querem passar pela redesignação sexual. Muitos querem, mas nem todos.
– Rola também o debate de que o homem trans, assim como o homem cis, é um opressor natural…
Pois é. Tem o mito de que o homem trans, só porque tomou hormônio e começou a ter barba, tornou-se um opressor. As pessoas esquecem que a gente teve uma vivência, que foi socializado de uma maneira, que foi lido de uma maneira e que, para chegar até aquele tipo de corpo, passou por muita coisa. É claro que existem homens trans que reproduzem machismos, mas não é só por causa do estereótipo do corpo que ele se tornou opressor. As pessoas esquecem que homem também passa por determinados tipos de opressão. O homem negro, o homem gordo, o homem com deficiência, o homem trans. Só que hoje as pessoas só focam no homem, esquecem o resto, e o colocam como opressor. Seria ótimo que as pessoas entendessem que cada pessoa não é uma coisa só, as pessoas são diferentes e plurais.
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– Muitos homens trans preferem a invisibilidade. Por que você optou por entrar na militância?
Eu já era do movimento estudantil secundarista desde 99, participei de coletivos da época, mas quando me assumi lésbica não participei de nenhum. De maneira mais forte, estou atuando mesmo no movimento de homens trans me aproximando do movimento negro. Não sei se foi uma escolha, mas sabia que queria colaborar de alguma maneira. O ativista tem que entender que a luta não é só dele, a luta é coletiva. É um trabalho que a pessoa se doa, porque não é cobrado, e é um trabalho de muita responsabilidade. O que atrapalha muito é que existe uma cobrança muito grande e esquecem que o ativista tem vida pessoal, é casado, tem que cuidar da mãe, da avó, do próprio trabalho pessoal. Às vezes fica parecendo que você não pode ficar nem doente.
O Ibrat é para todo e qualquer homem trans que queira fazer parte do ativismo dentro dele. E, de certa forma, toda pessoa trans já milita desde que acorda e sai na rua. Entendo que ativismo é um trabalho político, onde não cabe disputa de egos, eu me voltei para o ativismo, porque queria que as pessoas tivessem o mesmo acesso que eu tive, quero ajudar. Para fazer controle social e ajudar as pessoas no acesso e a reivindicar direitos.
– Dentro do Ibrat, o que tem aprendido?
Que este é um universo muito grande e que existem diversos tipos de homens trans e diversos tipos de vivências transmasculininas. É muito bacana ver que esses homens procuram viver a sua transmasculinidade de diversas maneiras. Desde o cara que usa batom e usa saia, até o cara que não quer usar nada disso. É muito plural e não existe um padrão de transmasculinidade. Aprendo com essa garotada mais jovem, e com os mais velhos também, mas sempre pontuo que muitos se esquecem que, se hoje eu e eles estão tendo a oportunidade de fazer essas reconstruções corporais, fazer reposição hormonal, é porque tem toda uma historicidade atrás. Muitos esquecem disso.
– Quais são as demandas dos homens trans?
São muitas. A principal é a retificação do nome civil. Mas a gente entende que há pessoas que não querem necessariamente fazer a retificação, então o nome social também é importante. Outra demanda é em relação às cirurgias, como a mamoplastia masculinizadora – utilizamos esse nome porque é bem diferente da cirurgia que é feita em mulheres cis. A histerectomia e a cirurgia genital que ainda é uma luta, pois ainda é experimental aqui no Brasil. Também tem a questão do ginecologista, pois homem trans precisa ir ao ginecologista, mas muitos não vão por medo de sofrer transfobia ou de o médico não saber como lidar. Enquanto a saúde for binária, ainda teremos que ir no ginecologista.
Tem a questão da hormonioterapia, que eu chamo de reposição hormonal, pois há homens cis que também precisam repor o hormônio – que precisa de receita e muitos fazem na clandestinidade, tendo problemas de saúde futuro. Tem a questão de homens trans que vivem em cárcere e que poderiam ir a celas especiais. Em relação a questão da Lei Maria da Penha, que protege os homens trans que não retificaram a documentação, mas não protege os que retificaram. Homens trans que querem engravidar, que envolve até a questão do registro das crianças. Enfim, são inúmeras demandas…
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– Você fez uma pesquisa sobre homens trans grávidos. Já é uma realidade no Brasil?
Começa a ser no Brasil e em vários lugares do mundo. Essa pesquisa comecei no ano passado por meio de outra, que chamei de “Corpos ressignificados”, que eu abordo vários corpos de pessoas diferentes e que são marcadas por alguma ressignificação corporal. O corpo do homem grávido é um corpo ressignificado duplamente, por ser trans e estar grávido. É mais difícil para um homem trans engravidar, porque socialmente quem engravida é a mulher. Só que entendo que quem engravida é o corpo. E que ser homem ou mulher não está ligado na questão do genital e nem do fisiológico, está ligado à identidade. Portanto, o fato de um homem trans engravidar não vai fazê-lo deixar de ser homem por causa disso. Ao contrário, precisa ser muito homem para engravidar. É apenas uma condição biológica e fisiológica que o corpo do homem trans permite.
Em alguns casos, como o do Thomas, nos EUA, precisou de parar testosterona. E em outros ele não vai mais poder por conta dos efeitos dos hormônios nos órgão reprodutores. Mas se for permitido e ele não tiver problema de saúde, o fato dele engravidar não tira o mérito dele ser homem. E há várias maneiras de engravidar. No Brasil, tivemos um caso no Rio Grande do Sul, com um casal trans. Tem um no Rio de Janeiro, um que é gay. E tem casos de inseminação artificial. Existem muitos homens trans que condenam, não entendem e acham errado. Mas é importante termos esse diálogo porque daqui a pouco vai começar a aparecer mais e mais homens nessa condição, essa é a realidade. E se pensarmos em homem trans grávido, acrescentamos outros temas como aborto e legalização do aborto, gestação paterna e etc.
-Nos crimes LGBTfóbicos que são contabilizados, existem dados sobre lésbicas, gays, travestis, alguns bissexuais, mas nunca falam sobre assassinatos por transfobia de homens trans. Isso não ocorre ou estes dados são invisibilizados?
Tivemos dois casos que tivemos conhecimento de assassinatos de homens trans. Um foi noticiado no Facebook e outro que uma pessoa matou depois que descobriu que o marido não tinha um pênis. Acho que essa invisibilização ocorre porque não há uma referência, mesmo, do que é ser homem trans. E porque em muitos casos pode acontecer o que acontece com as travestis e mulheres transexuais: contabilizam sendo gay. A gente ainda não sabe se eles estão morrendo – e eu torço para que não.
– Você consegue identificar racismo no movimento trans ou transfobia no movimento negro? O que fazer?
Existe, sim, pois são preconceitos estruturais. E fica parecendo que a questão de interseccionalizar fica só na teoria, pois as pessoas não querem falar de outras especificidades. E quando a pessoa não está aberta a isso, fica muito difícil entender e trabalhar outras questões de preconceito. Muitas vezes ela não entende ou sequer pensa que alguém dentro do movimento negro sofre transfobia. Ou então que alguém dentro do movimento trans sofra racismo. É complicado porque o movimento é pautado em questões específicas, só que dentro dela existem outras especificidades. Por exemplo: existem caras trans que são gays. Existem caras trans que são gays e negros. Existem caras trans que são gays, negros e que têm deficiência.
Então é difícil intersecicionalizar de maneira prática, por conta das pessoas mesmo, pela barreira que existe em entender a diferença no outro. Mas não é porque é difícil que deva ser deixado de lado, que não pode problematizar. Deve haver diálogo e conversa sobre homens trans negros dentro do movimento trans, e abertura de diálogo também, de homens negro trans dentro do movimento negro. Esse diálogo é o ideal para que as pessoas possam entender as particularidades dentro das demandas específicas de cada grupo. No Ibrat, por exemplo, temos o núcleo IbratVida, que dialoga com homens trans que têm deficiência e doenças crônicas. Fico muito feliz de ver meninos preocupados com este recorte.
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Agora, não dá para combater o racismo com transfobia e nem transfobia com racismo, né?
Não dá. E nem dá para comparar as opressões. Não é uma hierarquia de opressão. Precisamos estar atentos para não produzir e reproduzir preconceitos, porque todos nós estamos inseridos numa sociedade que nos educa a oprimir por sermos ensinados a ter como padrão a norma hegemônica branca, cis, heterossexual e tudo que foge a isso é julgado como algo não legítimo. A questão da interseccionalidade não é para você hierarquizar. É justamente para as pessoas reconhecerem seu privilégios e perceber quais são suas opressões e as opressões que as pessoas passam, para chegar num comum para que isso seja evitado.
– Hoje qual é o é o seu sonho?
Acho que a minha meta principal é ter saúde, porque uma pessoa sem saúde é muito difícil, e buscar ser feliz. Quero casar e ter a minha família, ter um emprego, a minha casa, o meu cachorro, ter filhos. Isso é na questão individual. Agora o meu sonho coletivo é que as pessoas parem de rotular as outras e de agir de maneira preconceituosa por conta da diferença do outro. Porque todo mundo é diferente.
Agradecimento: à pesquisadora Regina Facchini, que disponibilizou o seu apartamento em São Paulo para a realização da entrevista.