Frederico e Dioniso acima/ Benjamin e Leonardo abaixo
Por Neto Lucon
Quando tinha 19 anos, Alexandre Peixe dos Santos sofreu violência sexual de quatro homens cis transfóbicos. Um mês depois ele descobriu que estava grávido. Apesar de não escolher a gravidez, ele optou por manter a gestação e dar à luz sua filha, hoje com 25 anos e mãe.
Após terminar um relacionamento de dois anos com uma travesti, C. S. (a fonte pediu para não ser identificada) descobriu que estava grávido. Sozinho, sujeito à vulnerabilidade e sem querer passar por todas as transformações no corpo, ele decidiu abortar. Fez por métodos que colocaram a sua saúde em risco.
R. L. foi vítima de um “estupro corretivo” de um familiar e descobriu meses depois que estava grávido. Foi o próprio familiar que o levou a uma clínica clandestina de aborto. Ali, teve medo de morrer dada a falta de confiança que o médico passou. Hoje, passado o trauma, ele cogita engravidar novamente.
Anderson Cunha tornou-se notícia nacional em 2015 ao dar à luz seu filho com uma mulher trans em Porto Alegre. O hospital acolheu o casal e tratou-os de maneira acolhedora, respeitando a identidade de gênero de ambos. A criança, que tem quase dois anos, pode ser vista saudável e feliz nas redes sociais.
Após quatro meses de gestação, fruto de um relacionamento com um homem cis, Dioniso Ferreira sofreu um aborto espontâneo. O feto ficou retido em seu corpo por semanas e nenhum médico fez a curetagem por achar que ele teria tomado algo para abortar. Foi tratado de maneira hostil e passou pela curetagem de emergência.
As cinco histórias acima são de homens trans ou transmasculinos. Ou seja, pessoas que foram designadas mulheres ao nascer, mas que se identificam com o gênero masculino e que são homens. Pessoas que possuem características físicas que propiciaram a gestação de maneira natural ou por inseminação. De modo que gravidez, cuidados na gestação e aborto – para a surpresa de muita gente – não são pautas apenas de mulheres cis. Mas também de homens trans, transmasculinos e pessoas não binárias.
ABORTO
No fim de novembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu descriminalizar o aborto no primeiro trimestre da gravidez. Ou seja, que a interrupção da gravidez até o terceiro mês não seja vista como crime. O assunto, que sempre esteve nas discussões, voltou de maneira acalorada na internet. Entre opiniões favoráveis ou contrárias, houve muito bate-boca, discussões rasas ou aprofundadas.
Só esqueceram que há homens que engravidam, são invisibilizados, sofrem preconceito, abortam e também precisam ser escutados. O NLUCON conversou com 7 (sete) deles. Alguns relataram seus episódios de aborto e outros comentaram como essa pauta atravessa a vida dos homens trans ou transmasculinos.
Para o professor de educação física Leonardo Peçanha, por exemplo, descriminalizar o aborto é importante porque ele já ocorre. A diferença é que pessoas com dinheiro vão às clínicas e fazem. Já as pobres, principalmente as negras, estão morrendo e enfrentando problemas de saúde. “Descriminalizar é importante para que estas pessoas tenham o acesso de qualidade para fazer esse procedimento de maneira segura. O corpo das pessoas que podem engravidar tem que ser livre para que elas possam decidir o que fazer com ele”.
O militante Frederico Almeida y Sóter declara que, por uma questão religiosa, é contra o ato do aborto, mas que é a favor da descriminalização e a legalização do mesmo. Ele explica: “Nosso Estado é laico, então as decisões e as leis não devem levar em conta nenhuma religião. Parece que acham eu descriminalizando ou legalizando o aborto as pessoas vão abortar 10 vezes por dia, mas não é a realidade. É uma questão de saúde pública”, defende.
Dioniso também alega que não é a favor do aborto – “é algo doloroso tanto fisicamente quanto psicologicamente” – mas defende que é a favor da legalização. “É pura hipocrisia achar que abortos legalizados, feitos em clínicas, com acompanhamento psicológico e uma série de encaminhamentos médicos vá facilitar os abortos. Ao contrário, é mais fácil que as pessoas desistam da ideia. Hoje é mais fácil e perigoso abortar do que será com a legalização”.
Já Alexandre diz ser “super importante” a decisão do STF pois “dá autonomia para a mulher cis e também para os homens trans sobre os seus corpos”.
HOMEM CALA A BOCA?
Todos os homens trans entrevistados declararam se sentir invisibilizados e vítimas de preconceito toda vez que leem ou escutam alguém dizer que “homens devem ficar quietos” na pauta do aborto e gravidez, já que “não engravidam”. Há até uma frase levantada e disseminada com grande euforia pelas redes sociais: “se homem engravidasse o aborto já seria legalizado”. Eles entendem a revolta mediante a uma sociedade machista e misógina, mas que não diminui a invisibilidade causada ao grupo por tal discurso.
“São frases transfóbicas e cissexistas, porque homens trans e pessoas transmasculinas tem o corpo biológico que permite a gestação. E é uma gestação paterna”, diz Leo. “Quando dizem que homens devem se calar, elas estão negando a nossa existência, a nossa masculinidade e quem somos. Homens trans já abortaram e abortam e nem por isso foi legalizado”, diz o professor Benjamin Braga.
Dioniso declara que o cissexismo aparece quando o discurso contempla apenas as pessoas cis, nunca as trans. “Como se só existissem pessoas cis no mundo e nada mais. Acredito que isso nos invisibilize, sim. E para os homens trans isso é terrível, pois quando você generaliza nesse caso, ou parte do princípio que não somos homens, e sim mulheres, ou que somos absolutamente iguais aos homens cis (e não somos, nossa biologia é outra, nossas demandas sociais também), ou ainda simplesmente ignora nossa existência no mundo”.
Alexandre dá a dica: “Diga corretamente que HOMENS CIS não engravidam. Nós, homens trans, temos uma definição política que deve ser respeitada”.
Peçanha afirma que é preciso demonstrar na prática o feminismo interseccioanal. E que especificar que estão falando de um homem cis e não de um homem trans é uma forma. Benjamin afirma que o feminismo pode contribuir muito com a luta dos homens trans. “Enquanto o feminismo não agrupar e incluir diversas especificidades de indivíduos, fica difícil a gente contar com qualquer tipo de apoio. Se a gente já está na margem, a gente vai ficar na margem da margem da margem. Porque se existem mulheres pobres morrendo, imagine o que acontece com homens trans pobres? Quando a gente sabe que o nosso sistema único de saúde não está preparado para fazer qualquer atendimento neste sentido”.
Alexandre Peixe dos Santos pelo fim da cultura do estupro |
RELATO DE ALEXANDRE
“Aos 19 anos sofri um estupro corretivo por quatro homens cis que diziam que se eu nasci com uma vagina eu deveria gostar de pênis (claro que não usaram esses termos). No mês seguinte vim saber que estava “grávido”
Optei por não fazer o aborto. Mas o importante em dizer é que foi uma decisão minha, pessoal.
Fui um “grávido” até que engraçado, visto que nada nesse mundo é planejado para um homem ser “pãe”. Nem roupas, nem tratamento como homem. Bom, estamos falando do ano de 1991 também, nem eu conhecia essa nomenclatura, mas sabia que não era uma mulher cis.
Decidi mais uma vez sobre meu corpo em não amamentar nos moldes convencionais, optei por tirar o leite com uma bomba de leite e amamentar minha filha desse jeito por 1 ano. Hoje minha filha tem 25 anos, sabe que é fruto de um estupro corretivo, me chamava até os 15 anos de “pãe” e hoje tenho uma neta linda que amo”.
ABUSO A HOMENS TRANS
Não há dados sobre o abuso sexual cometido contra homens trans, mas Fred relata que as denúncias e desabafos são constantes. “Há o caso de um homem trans que foi abusado e que não teria a mínima capacidade de criar uma criança. E outro de um homem trans que sofreu um ‘estupro corretivo’, acabou engravidando e passa, além do trauma do abuso, por uma série de dificuldades por conta da gravidez”.
Benjamin afirma que homens trans não estão livres de sofrer violência e estupro todos os dias. “Eu mesmo já apanhei no metrô simplesmente porque estava circulando no metrô. Muitos homens cis se sentem na obrigação de praticar essa ‘correção’, como se a porrada pudesse impedir que a gente se expresse da maneira como a gente é”.
Dioniso declara que a ausência de dados se deve porque muitos homens trans, ao sofrerem abuso, deixam de denunciar pelo medo de sofrer mais preconceito. “Se procuramos a Justiça, somos tratados como mulheres e, se não aceitamos esse tratamento, somos ridicularizados. Nós somos alvos fáceis, já que a sociedade não nos reconhece como homens ou ao menos nos vê como seres humanos. A família não apoia, não socorre e nem ajuda, o estupro é visto até como uma forma de nos ‘endireitar’”, afirma.
Alexandre declara que a vulnerabilidade de um homem trans é a mesma de todas as mulheres, sejam elas cis ou trans. E defende que a decisão de manter a gestação ou não, independente do caso, deve ser da pessoa grávida. “Assim como para as mulheres cis, cabe ao homem trans decidir se pretende ou não gerar. Mas não só no caso de violência sexual, mas por qualquer motivo que seja, temos o direito de decidir sobre nosso corpo”.
SERVIÇOS DE SAÚDE NÃO PREPARADOS
A falta de preparo do serviço de saúde ao lidar com um homem trans grávido ou vítima de abuso também é apontado pelo grupo. “No hospital também seremos tratados como mulheres e essa é uma terceira violência. A pauta do aborto é importante para nós e precisa ser discutida conosco também para criar políticas públicas específicas para nossa população. Porque, quando sofremos essa violência, acabamos sendo ridicularizados e violentados pelos mesmos profissionais cujo sistema não reconhece o nosso gênero nem nossa condição como trans”, diz Dio.
De acordo com Leonardo, discutir aborto com homens trans é pertinente, porque começa a se falar sobre o direito reprodutivo para homens trans. “Nesse sentido ele vai poder fazer o aborto de maneira legal, de maneira segura e em uma clínica segura. E acaba dando aparato e sensibilizando até mesmo os casos do homem trans ou transmasculino que já retificaram nome e sexo nos documentos”.
Benjamin frisa que o que as pessoas precisam saber hoje em dia é que a pauta da gravidez desejável ou indesejável se divide entre mulheres cis, homens trans e pessoas transmasculinas. “Os serviços de saúde precisam estar melhor preparados para lidar com a diversidade, porque a tendência é que mais crianças apareçam da gestação de homens trans. Também acho uma afronta nos identificar como ‘pessoas com útero’, sendo que temos a identidade de homens trans ou transmasculinos e queremos ser respeitados como tal”.
Alexandre finaliza: “É preciso deixar explícito para as pessoas que homens trans são pessoas que foram designadas do sexo feminino ao nascer e que não se identificam desta maneira. Isso significa que dentro de suas especificidades a maioria das demandas de mulheres cis são as mesmas de um homem trans que engravida tem. Os cuidados, os riscos e a vulnerabilidade são basicamente as mesmas. Se um homem trans engravida e pretende gerar a criança, vai necessitar dos mesmos cuidados que uma mulher cis em seu pré natal e parto, com a diferença e o cuidado de ter garantida sua identidade de gênero. Caso não queira, esta pauta entra também no direito a autonomia do corpo”.