Por Neto Lucon
Fotos: Rafael Sandim
Uma criança trans que veste escondida as roupas da mãe. A transfobia marcada pela expulsão de casa. A reconciliação na vida adulta nas bodas de casamento dos pais. Esse foi o enredo da campanha do Governo do Estado de Minas Gerais contra a LGBTfobia estrelada pela administradora, maquiadora e ativista Laura Zanotti em 2016.
A campanha emocionou muita gente e sensibilizou acerca do acolhimento familiar e o indicativo de quem o “Amor Transforma Preconceitos”. Também fez Laura ganhar os noticiários e ser conhecida pela atuação. Foi seu primeiro trabalho como atriz – um grande sonho.
Diferente da campanha, Laura não sofreu com o preconceito na família. Seu maior desafio foi no mercado formal de trabalho – espaço que grande parte da população trans e travesti também encontra dificuldades de se inserir. Nas entrevistas de emprego, o “não” era certo. Tanto que durante alguns anos teve que se disfarçar, ou seja, fingir que é homem cis, para conseguir trabalho. Hoje, trabalha como administradora na ThoughtWorks e é reconhecida em sua identidade de gênero.
Em entrevista exclusiva ao NLUCON, Laura fala sobre a experiência dentro das empresas e as estratégias que teve para conseguir driblar a transfobia. Ela também comenta sobre os frutos da campanha estrelada, desafios e família. Você também tem a opção de conferir a entrevista em vídeo (ao final do texto).
– Conheci você por meio da campanha “O Amor Transforma Preconceitos”. Como foi estrelar ela há dois anos?
Recebi bastante mensagens na época. Pessoas falando que se sensibilizaram, fazendo várias perguntas. Acho que o carinho das pessoas foi muito legal, não só de pessoas trans, mas de pessoas cis. Foi incrível. O vídeo conseguiu tocar muita gente que precisava ser tocada.
Não assistiu? Confere a campanha:
– Muita gente pergunta se aquela história é a sua história. É?
Não, não conheço ninguém (risos). Não é a minha história completa, mas as pessoas sempre se identificam com alguma parte.
– O que tem da sua história ali?
A parte em que o menininho abre o guarda-roupa e começa a pegar brinco, batom, vestido (da mãe). Essa parte foi marcante, inclusive quando estava acompanhando as filmagens eu me emocionei muito, porque aquela cena refletiu muito a minha infância. Eu sempre pegava coisas da minha mãe. Lembro que teve uma vez que passei batom e o meu pai me chamou e eu não sabia onde tirava. Acabei passando na manga da blusa. Depois não sabia o que fazer com a blusa, e taquei fogo na blusa (risos). Isso com seis anos.
– Na campanha, há uma expulsão de casa. Como para você dizer para a família que é uma mulher trans?
Isso não aconteceu comigo. Também não cheguei a ter um momento de contar para a minha família. Eu acho que foi tão mágica a minha transição, que ela foi acontecendo aos poucos e a minha família foi absorvendo aquilo. O pessoal foi acompanhando junto, com o tempo. É lógico que esse acolhimento não reflete a realidade de todo mundo, mas é o que deveria acontecer: a família dar apoio. No meu caso, eu tive a sorte de ter uma família que me compreendeu e que o amor superou isso tudo.
– Você lembra de alguma referência trans que você teve e que ajudou naquele momento de se perceber mulher trans?
Eu lembro muito da Roberta Close. Ela estava no Gugu, ela estava nos programas, estava até na caixinha do leite (risos). Mas eu tive uma fase que eu relutei muito isso dentro de mim. Tanto que quando comecei a ir nas baladas eu falava que não queria ficar perto das travestis. Mas, com o tempo, conforme eu fui conhecendo pessoas trans e travestis na época, eu fui começando a me abrir mais. É aquela fase de não aceitação, de você não querer aquilo para você. E também por não ter muitas referências. Hoje, você vê que 90% das pessoas trans está na prostituição e você acaba atrelando que ser uma pessoa trans é aquilo. Mas com o tempo você vai se conhecendo e estou aqui hoje.
– A trasfobia também atravessa a sua vida? De que forma?
O Brasil está na nessa faixa de país mais transfóbico e também na faixa do país que mais consome pornografia de pessoas trans e travestis. Essas duas informações não batem muito, mas traçam um perfil das pessoas que fazem transfobia, principalmente na internet. Eu só sofri transfobia indiretamente e é muito difícil você reconhecer essa transfobia velada. Ou é procurando emprego, ou em locais que as pessoas estão te olhando ou te tratando diferente pela transfobia. E uma vez aconteceu de eu sair de casa e um senhor passar perto de mim e cuspir na minha direção. Você fica sem entender. Eu não abri a boca, não falei nada, só o fato de estar ali houve uma agressão. Ele teve a atitude de cuspir em mim, mas e se ele estivesse armado e tivesse que algo para tacar em mim? É muito do que pode acontecer e o que acontece nos dias de hoje.
– O que a gente pode pensar e refletir desse dado que você trouxe: o Brasil é o país que mais mata travestis ao mesmo tempo em que é o país que mais consome pornografia dessa população?
Tem uma série de leituras dentro desses dois dados, mas o mais importante é a hipocrisia. A sociedade é transfóbica, mas ao mesmo tempo ela sente atração, sente vontade por aquilo, tem o fetiche por trás e ao mesmo tempo não tem coragem de assumir aquilo, por medo, por fobia, por transfobia.
– Você é administradora. Como foi se inserir no mercado de trabalho?
Foi bem difícil no início. Eu saí de São Paulo em 2006 e fui para Belo Horizonte e a cultura de lá é muito diferente. Você sente que as pessoas são mais conservadoras. Eu consegui trabalhar na empresa disfarçada. Prendi o cabelo, coloquei roupas mais largas e consegui entrar na empresa. Fiquei oito anos, mas com quatro anos eu não estava aguentando mais ficar disfarçada. E já não tinha nem como mais, pois você faz amizade, as pessoas saem com você fora da empresa, estão nas redes sociais e elas sabem que aquilo que você vive dentro da empresa não é a sua realidade. Então quer saber de uma coisa? Vou pegar minhas férias, vou colocar silicone e acabar com isso tudo. Coloquei silicone e fui trabalhar como Laura normalmente. Foi libertador. Foi quando comecei a me empoderar mesmo.
– Como era para você passar por esse disfarce?
Era constrangedor. No início até funcionava, porque as pessoas começam a fazer parte da sua vida. A gente saía e eu não ia (ficar me disfarçando). Não gente, (disfarce) é só no trabalho, aqui fora é essa daqui a realidade. Então algumas pessoas próximas já iam acostumando com aquilo. Algumas pessoas sabiam, outras não sabiam, outras ficam sabendo e teve uma hora que eu cansei. Pois já estava me fazendo mal.
– Você chegou a fazer algum comunicado?
Eu só mandei uma mensagem para o meu coordenador: eu estou colocando silicone. E na época eu acho que ele não prestou atenção, porque estava trocando de coordenador. Só passou a entender no finalzinho, quando eu não voltei de férias imediatamente, pois estava de atestado. Eu tive sorte porque ele foi muito bacana comigo. Ele entendeu, se colocou no meu lugar. Mas era uma empresa toda, mais de mil funcionários. Para mim foi ótimo, libertador. Cheguei batendo cabelo (risos).
– O pessoal respeitou você, sua identidade de gênero, o seu nome social?
Não, isso não teve. As pessoas mais próximas já estavam acostumavam, as pessoas mais próximas eu pedia. Já as que eram mais distantes, chegavam e falavam: “Ó, fulano”. Eu só olhava torto. Mas eu acho que esse momento foi muito bom. Eu cheguei num ambiente em que eles não tinham uma pessoa trans na supervisão, eles foram bem. Foi um momento em que eu mudei a cabeça das pessoas que estavam perto de mim e eu levantei o debate dentro da empresa, que eles nunca tiveram. Só o fato de eu checar e chocar, criei mudanças lá. Hoje eu não estou mais lá, estou em outra empresa, e acabei encontrando com os gestores daquela empresa que queriam saber mais sobre diversidade. Daí chegando lá, com quem eles encontram: comigo. Foi bem legal, eu fiquei toda à disposição para ajudar, pois sei que a minha ajuda vai ajudar outras pessoas trans também.
– Depois que você saiu de lá foi fácil se recolocar no mercado de trabalho?
Primeiro eu fui saída da empresa. Mas eu já tinha criado um plano B e tinha a consciência de que o mercado trabalho não era receptivo às pessoas trans, e não é ainda, infelizmente. O plano B era fazer um curso de maquiagem e, se acontecer de eu sair, eu vou viver de maquiagem, até conseguir alguma recolocação no mercado de trabalho. E foi quando vim para São Paulo e estava conseguindo segurar a minha renda com maquiagem.
– O que a gente pode falar para a nova geração de pessoas trans e travestis sobre mercado de trabalho?
Eu acho que as pessoas mais antigas abriram muito caminho para a gente agora, como algumas pessoas agora estão abrindo para a próxima geração. Acho que essa geração pode tentar se introduzir no mercado de trabalho. A gente sabe que não estão em perfeitas condições, mas que tem muita gente tentando abrir caminho. Eu mesma, sempre tento abrir caminho.
– Na empresa que você trabalha hoje, a ThoughtWorks, há outras pessoas trans trabalhando? Qual é o trabalho que as empresas também precisam ter para essa inclusão?
Na empresa que eu estou trabalhando tem outras pessoas trans trabalhando. E mais que isso: ela diretamente quer contratar pessoas trans, pessoas negras, a diversidade. Ela tem consciência de que o trabalho que é feito lá dentro tem que ter essa diversidade, pois é o reflexo do produto que vai sair de lá. Não adianta um produto ser feito por pessoas cisgêneras de classe média alta que não vai refletir para uma pessoa na periferia usar. Ela entende que precisa trazer a diversidade. E ao trazer a diversidade precisam trazer um ambiente em que essas pessoas consigam se desenvolver, trabalhar, alcançar os seus objetivos e consigam ajuda. Entender a condição de uma pessoa trans, a condição de vida de uma pessoa que sai da periferia, você tem que entender esses contextos para conseguir introduzir dentro de uma empresa. Não adianta colocar uma pessoa trans lá e ela sofrer transfobia, pois ela não vai querer ficar. Esses ambientes precisam exercitar a desconstrução. Ela não é fácil, a gente se desconstrói diariamente. Eu me desconstruo diariamente, pois todo dia a gente tem algo a refletir e pensar sobre a sociedade.
– Percebo que pela transfobia as empresas perdem pessoas com muito talento e que poderiam contribuir muito…
Pois é… A gente não sabe qual é a trajetória da vida da pessoa que vai entrevistar a pessoa trans. Dependendo do que ela acha e do conhecimento que ela tem, ela vai reprovar a pessoa sem saber quem é aquela pessoa. Então a transfobia está impregnada muito antes do que naquele momento na entrevista de trabalho. É algo enraizado.
– Você tem carreira de atriz também?
Muita gente pergunta se sou atriz. Eu participei de um teste em uma agência, mas por sorte eu passei. Eu gosto muito de atuar, de música, de dança, bater cabelo… Inclusive eu já fiz show aqui em São Paulo aflorado, quando você começa a ter contato com a performance feminina. É um dos caminhos que segui, mas nem todo mundo segue esse caminho. Participei da Drag Tunnel, e competi com a Striperella, e uma vez cheguei a ir para a semifinal.
– Qual é o seu sonho hoje em dia?
Eu tenho o sonho de conhecer outras culturas, viajar pelo mundo, conhecer outras pessoas, lugares. É o sonho do momento, mas talvez amanhã pode ser que não queria mais isso.
Confira a entrevista em vídeo: