Por NLUCON
O que acontece quando uma pessoa ignorada pela sociedade tem voz? O que se espera de uma pessoa em situação de rua? Em maio deste ano, um vídeo caiu nas redes sociais durante a Greve dos Caminhoneiros e viralizou. Nele, Adriana Cavalcanti, mulher trans de 29 anos e em situação de rua, defendia de maneira extremamente elaborada o direito democrático de se mobilizar.
Compartilhado por mais de 2 milhões de pessoas em tom de surpresa – o que por si só demonstra preconceito sobre o que se espera de uma mulher trans em situação de rua – o vídeo fez com que Adriana tivesse sua voz escutada nas redes sociais e, agora, na grande mídia – bem como a reportagem do G1.
Descobrimos que ela é nordestina, que vive há 17 anos em Campinas, São Paulo, e que defende a atual situação à má gestão do Estado. “Não culpo minha genitora mãe, que de tudo fizera para tentar nos unir como família. Mas as condições psicológicas, emocionais e financeiras não as permitiram. Então, ela foi virtuosa de entregar na mão do Estado as crias, a fim de que esse através de seus respaldados orfanatos ou institutos pudessem nos ajudar. Só que aconteceu uma má gestão nesse intervalo”.
Ela sonhava em ser cantora e atriz, mas depois de viver em orfanatos e na Febem, hoje Fundação Casa, resolveu fugir aos 12 anos ao lado de três colegas. Logo conheceu na pele, no estômago e nas drogas as dificuldades ser alguém em situação de rua. Descobriu também que a fome é cruel, que a droga é a válvula de escape e que a sociedade passaria a vê-la como invisível ou, no máximo, como vilã.
“Eu já sofri de hipotermia quatro vezes. Já coloquei a mão na frente da boca e expirei ar gelado. Eu já perdi os sentidos, eu já morri. Para quem morreu e continuou por aqui, graças a esse trote de Deus, então eu passei a aproveitar a vida…”.
Todos os colegas que fugiram com ela na infância já morreram.
Assista ao vídeo que viralizou:
LIVROS
A maneira elaborada de pensar, refletir e falar sobre o mundo veio por meio dos livros e da prática da leitura incentivada pelos professores de português que teve na infância, ainda nos abrigos e na antiga Febem, hoje Fundação Casa. “Na falta de com quem conversar, eu entendi que os livros falam. Eles sempre vão a falar”. Descobriu Jorge Amado, Aluísio Azevedo, Tobias Barreto, Joaquim Manoel de Macedo, Vinícius de Moraes… O livro atual é O Cortiço.
“Os livros estão sempre a falar. Você os encontra em diversos lugares, jogados nas avenidas, nas bibliotecas e até nas cabeceiras da cama. Mas abandonados muitos deles, que não ligam para esse fato. Eles apenas estão lá, resguardando o momento certo para conversar. e depois quando alguém os enxerga, eles começam a falar. E falam, falam, falam. E deixam a mercê de diversos conhecimentos”, afirma.
Segundo ela, o livro afaga, conforma, constrói, acolhe, impulsiona e encoraja, intimida, motiva e mostra que “se acovardar é coisa para quem não sabe viver”. Eles ajudaram ela a entender porque o Brasil é o Brasil, porque é quem é e porque as coisas estão como estão.
Adriana conta que certa vez um rapaz se aproximou e disse que na escola era obrigado a ler aquele livro que ela folheava. “Perguntei se ele se sentia obrigado a ler, e disse que ‘sim, que era um livro chato’. Aí, depois que li três páginas, ele disse: ‘nossa, mas é bonito, hein?’. Expliquei: ‘não, bonito é a maneira que você o enxerga, e a maneira que eles te oferecem. Nada do que você é obrigado a fazer é bonito. Tudo o que você por prazer faz é maravilhoso. Agora, ele quer o livro emprestado”.
Ela chegou a ter uma biblioteca itinerante, emprestando livros para outras pessoas. Porém, eles foram levados pelos guardas com a justificativa da operação cata-treco.
Adriana narra um poema:
“Se o mundo está te condenando, se absolva.
Se o mundo te priva, se permita
Se o mundo te exclui, se inclua
Se você não tem um teto, agradeça por acordar por admirar o céu
Se você não tem endereço, agradeça, as suas pernas vão poder se locomover para qualquer um deles
Se você não tem paredes, sua vida é ilimitada”
O SONHO
Adriana diz que, se na infância seu sonho era ser atriz, cantora e comunicadora, ela realiza isso dentro de suas condições. “Eu permiti isso a mim, com ou sem reconhecimento dos outros. Eu não dependo da plateia para ser quem sou, eu me realizo. Eu não sou tão boa quanto muitas famosas, mas sou o suficiente para mim”.
Outro sonho é o de ter um espaço para poder morar, levar os livros e os quatro cachorros. Desde que o vídeo foi publicado, algumas pessoas tem aparecido para tentar ajudá-la. Dentre elas está a brasileira Jéssica Moreira Spencer, que vive em Chicago, nos Estados Unidos. Ela realiza uma vaquinha online de R$ 15 mil para ajudar Adriana nos gastos.
“O dinheiro vai ajudá-la. Mas estamos nos organizando, com outras pessoas na internet, na tentativa de conseguir um terreno e uma casa contêiner para a Adriana”, diz Orlailson Araújo, o autor do primeiro vídeo e amigo de Adriana.
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