Foto: Emerson Muniz
Este poderia ser um apaixonante conto de fadas pós-moderno. Sem príncipes, abóboras, fadas ou princesas. Mas com as linhas coloridas do acaso, que trazem o encanto da transformação, dos incríveis encontros e da paixão livre de preconceitos. Afinal, quantas pessoas passam por nós todos os dias? Com quantas delas trocamos um cumprimento, um sorriso, um abraço?
Dentro do metrô do Rio de Janeiro, o fiscal Rafael Bittencourt (28) estava saindo do trabalho e, como sempre, partia rumo à faculdade de informática. De supetão, sem ser avisado, a vida lhe deu uma rasteira e exigiu uma parada obrigatória. Tudo porque a porta do trem se abriu e entrou uma linda mulher: alta, magra, com os cabelos longos e pretos. Rafael não conseguia tirar os olhos dela e, de acordo com ele, “foi paixão a primeira vista”.
A garota parou em sua frente, percebeu o olhar e retribuiu. Mas o príncipe em questão era tímido demais para abordá-la. A cada estação que passava, ficava mais nervoso e não sabia o que fazer. Até que ela caminhou para deixar o trem, passou bem próximo e eles quase se beijaram. Rafael ficou atônito e a mulher, ah, ela deu um sorrisinho malandro no canto da boca.
O encontro poderia ser mais um dos que ocorrem cotidianamente e que desaparecem na estação seguinte. Mas a consciência de que aquela linda mulher sairia do trem para nunca mais voltar, fez Rafael ter uma reação inesperada. “Criei coragem e saí atrás dela, puxando-a pelo braço. Ela se virou, perguntei o nome e se poderia acompanhá-la até a sua casa. Felipa aceitou”.
Naquele dia – 5 de setembro de 2011 – Felipa Tavares (26) estava pisando em nuvens. Ela comemorava o seu último dia do workshop da agência 40 Graus e ainda não acreditava que havia escutado da boca de Serginho Mattos que se tornava a primeira modelo transexual do casting. Detalhe, este, que Rafael não ficou sabendo imediatamente.
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“Mesmo após a primeira relação, não percebi que ela é transexual”
Após o primeiro contato – que se esticou para um encontro em um bar, chamado por eles de “Bar do 1º Encontro” – os dois conversaram por horas a fio, se beijaram docemente e ele a visitava sempre que podia logo após a faculdade. A cada dia, Felipa se demonstrava mais fascinante, carinhosa, interessante e cheia de sonhos. E Rafael estava cada vez mais envolvido.
Após um mês de encontros e de interesse mútuo, o casal saiu para namorar na Lapa e acabou dormindo na casa de um amigo. O clima esquentou, os toques tornaram-se mais profundos e a primeira relação sexual iria ser consumada. “Mas ela parou e disse que estava menstruada. E que só poderíamos brincar de outro jeito [risos]. Foi o que fizemos”.
Embora a modelo não tenha realizado a cirurgia de redesignação sexual [popularmente conhecida como mudança de sexo], Rafael não notou nenhuma diferença durante o contato extremamente íntimo. “Sei que parece estranho, mas já havia bebido um pouco e não percebi o que ela tinha a esconder [risos]”.
Com o tempo, a sereia da vida real decidiu finalmente preparar o momento para falar mais sobre si e das partes do seu corpo que – assim como as sereias dos contos de fada – nem sempre condizem com a expectativa do parceiro. Usou da criatividade e, claro, dos “bons drink”.
“Ela me chamou para ir à The Week e eu estranhei, pois estava acostumado a frequentar lugares de rock e nunca tinha ido a uma boate GLS. Mas jamais imaginei a surpresa que me esperava no final daquela noite. Curtimos a balada e depois fomos para um motel. Quando o clima esquentou, ela me parou e disse que teríamos que conversar”.
Felipa se tornou uma incógnita. “Será que ela está grávida, que está doente, que tinha outro?”. Rafael jamais imaginou que ela – a sua mulher perfeita – é uma mulher transexual e, “pior”, que ainda não é operada. “No primeiro momento não entendi. No segundo, sentei na cama e senti o efeito da bebida sair do meu corpo. No terceiro, achei melhor dormir e, no dia seguinte, cada um foi para a sua casa”. Seria o fim?
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“Não conseguia parar de pensar em Felipa”
Rafael nunca cogitou se relacionar com uma mulher trans. Anteriormente, relacionava-se com mulheres biológicas, sequer sabia detalhes sobre a vida de quem mudou o gênero e tampouco que pudesse se apaixonar por alguém com tais características. Diante da reação do pretendente, até mesmo Felipa estava desacreditada na relação e sentia que nunca mais iria vê-lo algum dia.
Mas ele começou a perceber que não conseguia tirar a modelo da cabeça e de lembrar de todos os bons momentos que passaram juntos. “Se ela era até então a mulher perfeita, o que poderia mudar?”, pensava. Foi então que ele passou a pesquisar tudo sobre transexualidade na internet para saber, além do que se tratava, dos preconceitos que Felipa vivia cotidianamente.
O jovem admite que teve receio de mergulhar no romance pelo possível fardo que ele também teria que enfrentar. Mas não deixou Felipa sair pela porta de novo. “Era tudo diferente, pois estava começando a ver uma nova realidade e contei com o jeito carinhoso e compreensivo de ser da Felipa. Ela me ensinou a lidar com as diferenças e logo já estava disposto a enfrentar todos para fazê-la feliz”.
Apesar de tudo parecer resolvido, um telefonema prometia mudar a história. A mulher de Rafael ligou para Felipa. Sim, ele era ca-sa-do.
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Assumir ou largar
“Todo mundo tem segredos, e eu também tinha o meu [risos]”, diz Rafael, que era casado há oito anos com uma mulher biológica e que até então não havia contado nada para Felipa. A revelação do “pequeno detalhe” foi difícil para os dois, mas Rafael decidiu oficializar o mais rápido possível o divórcio e ficar livre para mergulhar no relacionamento com a modelo. Assumindo-a completamente.
“Felipa tornou-se a minha mulher, a minha amante e a minha amiga, aquela que está sempre ao meu lado. Admiro a sua força e o seu coração, pois sei que a cada dia ela luta para sobreviver e mostrar para a sociedade que ela é uma mulher de corpo e alma. Pois é isso que ela é, uma mulher”, defende.
Após dois meses de namoro, ele levou a sua musa para ser apresentada para toda a família. No Natal, seus olhos brilhavam ao fitarem os de Felipa, que estava encantada por ser acolhida com respeito pelos parentes do amado. “Minha avó a trata como neta, todos os meus primos gostam dela, isso sem falar das minhas primas, que ficam horas conversando com ela. Mas não seria diferente: Quem não gosta da Felipa?”.
Rafael também a apresentou com naturalidade nas ruas, no trabalho e para os amigos – inclusive mostrando os vários books dela como modelo. Nunca escutou piadinhas e o único problema ocorreu no guichê de uma companhia de viagem. “O atendente, que era gay, percebeu que a Felipa é trans e perguntou o nome dela. Ela disse ‘Felipa’, mas ele continuou com ar de deboche: ‘Quero o da identidade’, dizendo bem alto para todos escutarem… Ela ficou bem brava”.
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Dividindo as tarefas
Vivendo a vida de casada há pouco mais de um ano, Felipa adora ser chamada de princesa todos os dias ao acordar. “Então, ela levanta com um lindo sorriso e vai preparar o nosso café da manhã para tomarmos juntos”. Depois, prepara-se para ir ao trabalho e não para. “Está sempre arrumando trabalhos para fazer, desde ensaios fotográficos, até aulas de passarela”.
Nas tarefas domésticas, é Rafael quem cozinha e lava as roupas. Felipa, que não sabe fritar nem um ovo, arruma e decora a casa. “Mas quando estão de folga, tudo é dividido, feito em total parceria com uma boa música e vinho.” Nos momentos de lazer, saem para jantar, vão ao cinema, ao jogo do Botafogo, assistem séries debaixo do edredom e fazem maratona de videogame.
Um dos momentos mais marcantes da história dos dois ocorreu durante uma trilha no Pão de Açúcar. Eles foram um pouco tarde e ao chegarem, não conseguiram entrar no Pão de Açúcar. “Tivemos que descer por outra trilha que tinha, com um visual lindo do Rio de Janeiro e ficamos vendo o pôr do sol. Como não tinha ninguém, fizemos amor neste cenário mágico”.
E as brigas? “Rafael é um homem calmo e sabe entender que os hormônios mexem comigo [risos]. Somos muito parceiros, cúmplices e apaixonados”, explica Felipa. “Só brigamos, por exemplo, quando eu quero assistir Disney Channel e, ele, futebol”.
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CAMA E CORPO
Desde que revelou que é uma mulher transexual para Rafael, Felipa disse que almeja fazer a cirurgia de redesignação sexual – a tal transformação tão presente nos contos de fada, da sereia que almeja se transformar em mulher, do Pinóquio que almeja ser menino. E conta com o apoio do amado.
“Lido bem com o corpo dela, pois ela tem um corpo lindo e cheio de curvas. Mas nem sempre foi assim. No começo, Felipa só queria fazer amor de calcinha ou de luz apagada. Demorou um pouco para ficarmos a vontade e eu me adaptar a essa mulher incrível que eu tenho”, justifica ele, que se orgulha da carreira e ensaios fotográficos.
Caso a operação nunca ocorra – pelo tempo que demora pelo Sistema Único de Saúde e pelo valor na cirurgia privada – Rafael diz que também não irá se importar. “O nosso sexo é incrível do jeito que é. Ela já dá conta do recado e, se operar, vai me matar [risos]. Até porque, em um relacionamento, nem tudo é sexo. Não casamos com um órgão genital e, sim, com uma pessoa”.
O passo mais importante, de acordo com os dois, é o casamento e futuramente a adoção. “Já estamos preparando, mas ainda aguardamos a troca de nome dela. Já temos até padrinhos! Já sobre adotar um filho, não só é o meu grande sonho, como é o dela também. Só temos que ter algumas prioridades, estarmos bem estruturados para dar uma boa educação”.
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Final feliz?
Embora a história de Rafael e Felipa já tenha superado muitos obstáculos, a vida de casal é um novo recomeço a cada dia. Apaixonados, eles vivem intensamente, com respeito, admiração e sonhos em comum. A história não termina com um ponto final, mas com a projeção de novos rumos e a promessas de novas e surpreendentes experiências.
“Felipa é o grande amor da minha vida. Agradeço a Deus todos os dias por tê-la colocado em meu caminho e por me fazer o homem mais feliz do mundo. É minha razão de viver, é uma mulher guerreira, carinhosa, quente, sexy, fofa, divertida e, para mim, perfeita”, diz Rafael, que a levará no Dia dos Namorados para um restaurante mexicano e no bar do primeiro encontro.
Que bom que ele não deixou aquela linda mulher ir embora do metrô…