Por Neto Lucon
Quando Ernesto Denardi (foto acima) nasceu há 20 anos, os médicos não conseguiram definir se ele era “menino ou menina”. Abriram o bebê para estudar o caso: encontraram tubas uterinas e o cariótipo revelou os cromossomos XY. Optaram pelo processo de masculinização.
Após o parto de Michele Bittencourt, 35, um dilema semelhante surgiu: o genital possuía clitóris avantajado, muito semelhante a um pênis, um útero pequeno e gônadas que não produziam estrogênio. Optaram por definir ‘menina’ e o submeteram a duas cirurgias.
Logo após o nascimento de Amiel Modesto Vieira, de 34 anos, várias enfermeiras e curiosos se reuniram no berçário para ver o ‘bebê que nasceu sem sexo”. Ele tem a síndrome de insensibilidade e andrógenos, possuía cromossomos XY e, ainda bebê, após ser atração do hospital, passou pela cirurgia de vaginoplastia.
Ernesto, Michele e Amiel fazem parte de um grupo ainda invisibilizado, mas muito comum: o das pessoas intersexo (ou intersexuais). Ou seja, daquelas que nascem com órgãos genitais internos ou externos fora dos padrões médicos e de uma sociedade cisnormativa e binária. E cuja condição é “corrigida” ou “mutilada” na infância por meio de cirurgias e hormonização.
Entenda: em muitos casos são necessárias as intervenções (sobretudo internas) por questão de saúde. Em outros, elas são realizadas por mera questão de encaixe binário. É preciso destacar que após as cirurgias e os processos de hormonização nem todo intersexual se identifica com o gênero e genital que lhe foi atribuído no hospital.
Nesta quarta-feira (26), reivindica-se o Dia da Visibilidade Intersexo. Data em que muitas pessoas que nasceram nesta condição falam sobre as suas vidas, derrubam mitos e levantam as suas bandeiras. E mostram que existem e que resistem. De acordo com o site da ILGA, pelo menos uma a cada 2 mil pessoas nascem intersexo. Ou seja, muitas passam a vida toda sem saber. O NLUCON conversou com seis delas.
Confira:
SEGREDO DE FAMÍLIA
O sociólogo intersexo e não-binário Amiel teve síndrome de insensibilidade a andrógenos, a SIA (como se no momento da formação do genital, o corpo fetal fosse alérgico ao hormônio que define a parte sexual, no caso, a testosterona). Porém ela só foi descoberta aos 33 anos, quando encontrou por acaso um documento do Hospital das Clínicas de São Paulo.
O documento falava para a mãe que ele tinha SIA. Meses depois foi atrás de seu prontuário médico que “relatava que cromossomicamente eu era um homem e aos 9 meses foi feita a cirurgia de vaginoplastia”.
Amiel prefere ser tratado no masculino em protesto a cirurgia compulsória feita em crianças intersexuais |
Amiel lembra que foi uma “menina com medo de tudo e que se achava diferente de todas as crianças”. Não tinha amigos, pois os pais o criaram de uma forma que escondesse a raiz da história. Ele sabia que não tinha aparelho reprodutor, mas não entendia mais do que isso. Na adolescência, tomou hormônios para o “crescimento”, que na verdade eram o início da feminilização hormonal e as mudanças de seu corpo.
Por medo de sofrer preconceito, nunca teve experiência em relação ao sexo. “Sempre tive medo quanto ao sexo, além de ser preparado pela religião a viver isso durante o casamento. Nunca namorei, transei ou casei. Não sei como vai ser caso eu namore e transe com alguém . Tenho muito medo disso, da reação dos diádicos ao descobrir que sou intersexo”.
Quando se entendeu de fato intersexual, escreveu um texto e assumiu para o mundo no dia 28 de junho de 2016. “O texto circulou as redes sociais e foi publicado em uma revista digital, dando conhecimento a minha história e divulgando o que é ser intersexo. Desde então eu sou intersexo e luto por nossa visibilidade”. Confira a página de Amiel clicando aqui.
Ele declara que a intersexualidade ainda causa espanto, horror e surpresa na sociedade. Mas que esta característica é biológica e fruto da natureza. “Queremos o reconhecimento do intersexo como pessoa humana e sua existência como intersexo como direito humano. O corpo e o indivíduo intersexo merecem respeito”.
A ESCOLHA DO OUTRO
Michele revela que sempre soube que era “diferente”, mas que durante muito tempo não tinha consciência do que significava essa diferença. A família não contava a verdade ao mesmo tempo em que era encaminhade aos endocrinologistas e era submetide a hormonização. (obs: os artigos em “e” foram escritos mediante ao pedido de Michele).
“Lembro que ninguém respondia diretamente minhas dúvidas, que o assunto era tão tabu que eu mesme evitava perguntar muito a respeito”, conta.
Michele passou por duas cirurgias sem que tivesse consciência para decidir. Na primeira, as gônadas foram retiradas porque os médicos acreditavam que corriam o risco de se tornarem cancerígenas (mesmo sendo apenas uma suposição). Na segunda, os médicos “decidiram mutilar minha genitália”.
“A lógica de mutilar um clitóris que parecia ser um pênis era de que, futuramente, nenhum homem iria querer se relacionar comigo. Ou seja, em momento algum o meu prazer sexual foi levado em consideração. É como se o meu corpo existisse para cumprir o papel de ser atrativo a outros”, reflete, destacando a violência que sofreu com o aval da medicina.
Michele afirma que teve infância e adolescência sofridas por preconceito |
Eli começou a falar abertamente sobre a intersexualidade após a morte do pai. E conheceu a palavra por meio da militância trans. Uma luz após um período de exclusão. “Minha infância foi regada a solidão, rejeição e muito bullying e a adolescência foi ainda pior. Fuga era o eu queria e drogas era o que tornava isso possível. Por muito tempo eu tentei me matar, porque odiava meu corpo por ser diferente. Minha vivência foi sofrida”.
Vale ressaltar que há pessoas intersexo que se sentem confortáveis com o gênero e o corpo atribuídos e escolhidos de acordo com os protocolos médicos. Porém, muitas outras não se sentem confortáveis com tais escolhas no decorrer da vida. E que consideram essas cirurgias “mutilações genitais” e vítimas de “hormonização forçada”.
Aliás, esta é a principal bandeira de luta das pessoas intersexuais.
O SEGREDO DAS VITAMINAS
O DJ Haru Hyakutake, de 20 anos – que nasceu com hipospádia, clitoromegalia e hirsutismo leve, devido à Hiperplasia Adrenal Congênita – também recebia anticoncepcionais com a justificativa de serem “vitaminas”. O que fazia seu corpo se feminilizar sem a sua autorização.
Na infância, foi socializado como menina, recebia vários outros remédios que nunca diziam para o que serviam. Também era forçado a vestir roupas que apertavam os seus genitais para que não causasse olhares ou chamasse atenção para a sua diferença – sobretudo quando praticava natação.
Na puberdade nenhuma transformação ocorreu, ao contrário de outros adolescentes. Até que começaram a dar as tais “vitaminas”, que ao contrário de deixá-lo mais confortável, o deixaram bastante confuso. “Quando questionei minha mãe, tudo o que ela me disse é que não queria que eu fosse uma aberração”, conta.
Haru percebeu que “vitaminas” deixavam-no com corpo feminino; diferente do que ele queria |
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Ao mesmo tempo ele via os seus seios se desenvolvendo, não menstruava e também via os pelos crescerem nos mesmos lugares dos meninos cisgêneros. Resultado: Foi alvo de bullying e diversas violências morais. Hoje, ele se define como não-binário e prefere ser tratado por artigos masculinos ou neutros.
De acordo com Haru, ser intersexo ainda hoje é ser invisível e passar por várias violências, muitas vezes sem saber o motivo.
“Nas escolas não ensinam nada sobre o corpo humano não-diádico. E, se ensinam, é um resumo tão básico que se aprende ao obsoleto ‘hermafroditas’. Você aprende que existem homens (que são sempre XY) e mulheres (que são sempre XX) e que tudo que se encaixa fora daquilo é incompleto, deficiente, raro, exceção e anormal”.
INFÂNCIA ESTAGNADA
Rebeca Cavenaghi, pessoa intersexo e não-binária de 18 anos, nasceu com “um corpo cujas características físicas se assemelhavam mais com aquelas geralmente relacionadas ao sexo biológico feminino (canal vaginal, clitóris aumentado, etc…). O cariótipo, no entanto, é XY e não possuía gônadas completamente desenvolvidas e útero”. Ela passou por uma vaginoplastia enquanto bebê e só soube de tudo isso aos 16 anos.
Na infância, sofria com a exigência de se encaixar como uma menina. Na adolescência, os processos foram complicados. Ela via os amigos tendo os corpos modificados, enquanto estava estagnada na infância. “O meu caso foi um tipo de adolescência tardia. O desenvolvimento físico, mudança da mentalidade e da própria imagem só foram ocorrer recentemente. No começo, era difícil lidar, havia uma sensação de não pertencimento”.
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“Ser intersexo requer bastante amor próprio e fé em si mesmo, pois nossa existência é posta à prova a todo momento. É um sentimento de incompreensão, de não caber dentro desses dois limites pré-estipulados”, declara ela, que afirma que sua “transição” ocorreu puramente no plano mental. “Foi uma mudança na maneira que me percebia e percebia meus limites. No plano físico, continuo com a hormonioterapia que faço desde os 11 anos com estrogênios”.
Ela acredita que o seu corpo ainda não completamente desenvolvido representa o conceito de não-binarismo. “Aprendi a respeitar o meu tempo e perceber essas diferenças como aspectos íntegros da minha identidade”.
VIOLÊNCIAS
Além da violência a que muitas pessoas intersexuais são submetidas na infância e adolescência pela medicina e familiares, o preconceito continua na vida social ao longo dos anos. “Somos julgados como aberrações que não tiveram escolha, a não ser a de permanecer calados e tentar passar imperceptível”, declara Haru.
Ele afirma que certa vez uma médica questionou o porquê de ele estar incomodado por terem mudado o seu corpo, já que ele parecia uma “menina normal e saudável”. E que era para agradecer a família por ter feito esse “favor” para ele, mesmo tendo outras vontades sobre o próprio corpo e de elas nunca terem sido levadas em conta.
Michele afirma que muitos preconceitos que pessoas intersexuais passam é velado. “Quando estava no ambiente de trabalho, várias pessoas não queriam tratar de uma venda comigo por não saber se tratava de um “homem, mulher, trans, cis, sapatão ou viado. Então como eu poderia me justificar dizendo que era intersexo?”
Ernesto afirma que os pais contaram a sua condição biológica aos poucos, mas que mesmo assim no início foi complicado quando o viram longe das expectativas cisheteronormativas – como o fato de se interessar também por garotos e ser uma pessoa não binária (aquela que não se sente representada nos estereótipos envolvendo homem e mulher). Hoje eles o aceitam e o relacionamento é maravilhoso.
A bandeira intersexo |
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A vida amorosa passou por altos e baixos, e foi determinante para a autoaceitação. Tanto de um parceiro que não reagiu bem – “não me entregava por vergonha do meu corpo” – quanto do atual marido que mudou tudo. “Ele dizia que não havia nada de errado, que eu só era diferente e que ele amava minhas diferenças. Dizia que eu era perfeito da forma como vim ao mundo. Ele foi essencial para o meu processo de aceitação”, diz.
MULHER TRANS INTERSEXUAL
Dionne Freitas, de 27 anos, é uma mulher trans intersexual. Ela, que tem o cariótipo XXY, diz que sua intersexualidade se deu porque o corpo não funcionava “nem como masculino nem como feminino”, devido à disgenesia gonadal que gera hipogonadismo. Ou seja, quando os ovários ou testículos não produzem hormônios. E para ter testosterona ou estrogênio é necessário fazer a reposição hormonal.
Ela foi orientada a ser um garoto, mas sabia que era uma garota. Percorreu vários médicos que sugeriram a hormonização com testosterona, o que ela se negou. Começou a tomar hormônios femininos por conta própria, enfrentou a questão da transexualidade em sua casa e grandes burocracias para que médicos aceitassem tratar uma pessoa intersexual trans com estrogênios.
A partir dos 14 anos, passou finalmente pela reposição hormonal estrogênica, que faz até hoje. Também realizou a cirurgia de redesignação sexual (genital) e aumentou os seios com próteses mamárias. Mas se você acha que todos os problemas acabaram, engana-se. Dionne destaca que pessoas intersexuais trans sofrem, além da interfobia, a transfobia. Ela foi perseguida por familiares, recebia pedras e cusparadas quando andava na rua e era assediada por curiosos.
Dionne relembra dos ataques que sofreu: “Era humilhada e ridicularizada no ensino fundamental, mas as violências transfóbicas foram mais evidentes no primeiro ano do colegial, onde tentavam impedir o uso do banheiro feminino. Tentavam até me tirar do banheiro a força, ou tentavam arrancar minhas roupas para verem o meu ‘sexo’”, lamenta.
Dionne: “Tentavam me tirar do banheiro a força” |
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Diante de tantas violências, ela decidiu se engajar na luta contra a interfobia e a transfobia.
BANDEIRAS DE LUTA
Por meio da página “Visibilidade Intersexo” várias pessoas fazem postagens, dão seus relatos, informam e sensibilizam pela questão intersexo. Nesta data, algumas são as bandeiras urgentes levantadas pelo grupo. Dentre elas está a proibição de cirurgias em bebês intersexos, caso não haja risco de morte. E a aprovação da PL 5002/2013, a Lei de Identida de gênero, que ajudará a população intersexo que é trans e não binária no reconhecimento de sua identidade.
“Hoje a maior bandeira intersexo envolve a despatologização de pessoas intersexo, a proibição da mutilação genital em pessoas intersexo, o direito a autodeterminação de gênero, a luta pela visibilidade intersexo e a conscientização das pessoas de que a intersexualidade é outra forma de sexo biológico”, declarou Ernesto.
Michele diz que nenhuma pessoa deveria ser obrigada a passar por cirurgias genital, que só cumprem a função de enquadrar corpos ao que a sociedade considera normal. “Enfim, reivindicamos o direito de sermos nós mesmos e que a sociedade e o Estado reconheçam nossa existência. Queremos que nas certidões de nascimento tenha espaço para esse reconhecimento, que seja marcado como sexo ‘intersexo’”.
Por fim, Rebeca defende que é essencial que a intersexualidade seja abertamente discutida e desmistificada. “E que as crianças intersexuais possam ser criadas de maneira que entendam e amem esse aspecto dentro de si. Queremos ser vistos e ouvidos, pois nosso sexo biológico não se encaixa em duas caixinhas. E as pessoas precisam entender isso”.
– NÃO DÊ CLOSE ERRADO
* Não chame pessoas intersexo ou intersexuais de “hermafroditas”. Primeiro, porque se trata de um termo considerado pejorativo ao grupo. Depois, porque não existem hermafroditas (ou seja, seres que possuem reprodutor masculino e feminino completos) na espécie humana, como é o caso das minhocas.
* Não peça para ver foto ou saber da genitália ou cirurgias de pessoas intersexuais. Caso não haja intimidade, essa pergunta é abusiva, ofensiva e digna de uma resposta igualmente grosseira. Afinal, essas pessoas não estão para satisfazer as suas curiosidades e nem alimentar seus fetiches.
* Não considere, pense ou diga que pessoas intersexuais são defeituosas. Precisamos entender que o genital destas pessoas não é necessariamente masculino ou feminino. E que intersexo deve ser tratado como tal, com naturalidade, sem a pressão ou necessidade de ser corrigido ou encaixado.
* Não queira dizer o que a pessoa é: “eu acho que você é homem”. Pessoas intersexo pode ter o gênero e a identidade de gênero que quiserem – bem como qualquer pessoa. A maneira como o corpo se encaixa na concepção do eu cabe apenas a essas pessoas decidirem. Isso se estende à genitália. Existem pessoas intersexo que são cisgêneras. Outras são trans binárias. Outras são trans não-binárias. Isso tudo vai da autoidentificação. Não existe um padrão e nem deveria ter.
– Nem toda pessoa intersexo tem genital ambíguo, isso não quer dizer que a pessoa é mais ou menos intersexo. É apenas uma característica. Existem vários tipos de intersexos que se caracterizam em mais de 40 tipos de características classificadas em quatro tipos e não somente em hermafroditismo termo que nem se usa mais. 46, XX Intersexo ; 46, XY Intersexo; Intersexo Gonadal Verdadeiro; Intersexo Complexo ou Indeterminado.
* Se você tem casos de intersexualidade em sua família, sobretudo se acabou de descobrir, procure dialogar com pessoas intersexuais. Que procurem conhecer os relatos de quem vivenciou, antes de qualquer decisão precipitada. A página com várias dessas pessoas está aqui.