Professoras trans e travestis revelam desafios dentro do espaço escolar admin Julho 3, 2024

Professoras trans e travestis revelam desafios dentro do espaço escolar

A escola é um dos primeiros ambientes de aprendizado, troca e socialização que uma pessoa em geral passa em sua vida. Também é um dos primeiros espaços que muitas pessoas trans e travestis conhecem o que é preconceito, exclusão e violação. Muitas vezes legitimadas por profissionais, falta de políticas inclusivas e políticos que barram a discussão.

A evasão escolar da população trans é de 82% (estimou em 2016 o presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil, João Paulo Carvalho). Os relatos são cotidianos e confirmados pelo estudo “Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: Por que frequentam?”, que informou que 19,3% dos alunos de escola pública não gostariam de ter um colega de classe travesti, transexual ou homossexual.

Atualmente, alguns avanços já foram realizados, como a resolução de nome social do MEC. Ela permite que estudantes trans e travestis maiores de 18 anos ou menores com autorização dos representantes legais possam utilizar o nome em que são conhecidas e conhecidos socialmente, em detrimento do que está no registro civil. Mas, diante de tantas denúncias, violações diárias e demandas, ainda há muito o que se fazer.

Paralelo às trajetórias de quem frequenta a escola enquanto estudantes, há uma parcela dessa população que, mediante a trajetórias individuais, resistência e alguns privilégios, conseguiu driblar a transfobia institucional, concluir os estudos, se formar em uma faculdade e que, hoje, volta ao ambiente escolar enquanto professores e professoras. Uma realidade não menos difícil ou desafiadora, mas que vem abrindo portas, servindo de representatividade positiva e mostrando que o preconceito não deve nunca se sobressair ao talento.

Na Semana do Professor, o NLUCON traz relatos de professoras e professoras que responderam: “Qual é o maior desafio de ser um/a professor/a trans ou travesti no Brasil?”. Em nosso Instagram, também relembramos alguns relatos de entrevistas com alguns educadores trans e travestis sobre a escola (veja aqui).  Confira abaixo os depoimentos inéditos e exclusivos:

Alexya Salvador
Professora de Inglês e Português / Mairiporã – SP

“Ser uma professora trans é um desafio diário. O que me fortalece é sentir que o preconceito não está nos alunos, e sim, nos adultos. Acredito que essa nova geração será de adultos mais tolerantes e dispostos a conviverem em sociedade com a diversidade, pois eles sabem que nós não somos aquilo que eles aprenderam em casa muitas vezes. Os meus alunos são tão carinhosos comigo. Fazem festa, me abraçam e dizem que eu sou o diferencial na vida deles. É isso que me motiva a continuar. Sei que muitos deles não serão transfóbicos, pois sempre lembrarão de quem eu fui um dia na vida deles”.

Isabella dos Santos Silva
Professora de História / Itabuna, Bahia

“Meu maior desafio como educadora é poder acordar sem me preocupar com rejeição no mercado de trabalho formal, diante do simples fato de minha existência ser mulher trans. Acordar sem o medo de ser obrigada a fazer outra coisa para me sustentar, por causa da enorme rejeição no ensino, que ainda é fortemente cisheteronormativo.

Como professora e mulher trans, espero ter uma vida com emancipação digna de verdade. Aproveito para registrar quanto é necessário cotas em concursos públicos para pessoas trans, que assim como eu são chutadas do mercado de trabalho formal em algum momento. E para mais de 90% de nós, chutadas definitivamente. Obviamente, o país (Estado) tem uma dívida social intensamente atual com as vidas das pessoas trans, além da dívida história, afinal o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e tem um altíssimo índice de suicídios, exclusão familiar e no mercado de trabalho formal.

Desse modo, já que o mercado de trabalho formal privado tem total autonomia para excluir nossos corpos trans, nossas habilidades e competências, então, cabe ao Estado começar a criar meios de inserção de todas/os nós, pessoas trans, no mercado de trabalho formal, um desses meios já sugeri logo acima no texto. Um desejo simples como educadora e mulher trans, acordar todos os dias e saber que vivo uma vida emancipada com dignidade de verdade. Para mim, não basta apenas viver, mas viver com dignidade”.

Sara Wagner York
Professora de Teatro e Língua Inglesa / Rio de Janeiro

“Fazer se inteligível e legitima é a maior complexidade encontrada por mim, enquanto professora travesti em sala de aula. Demonstrar que de fato você está naquele espaço (físico) de múltiplos lugares (de ação e poder) para ressignificar não é tarefa fácil, mas os últimos a julgar e qualificar são xs alunxs. Antes deles um série de entraves e tensionamentos são traçados entre docentes e professorx, direção e professorx, equipe técnica e professorx e ao final, por pais e professorx, se todxs “fizerem de conta que somos normais”, a aula será dada.

Normal, é uma qualidade que segundo uma aluna do 6° ano é corriqueiro. Após me chamar de anormal, eu perguntei por que e ela disse, “você não é comum na escola”. As questões entretanto começam a se complexificar quando as perguntas que se cruzam, nos são atravessadas. Uma vez durante um encontro no pátio ao final da aula, uma aluna negra discutia o modo racista como era tratada, enquanto eu tentava ajudá-la, um outro aluno (trans) era tratado no feminino por uma das diretoras e dois meninos (maiores, de uns 16) tentavam “passar a mão” em uma aluna de 13 anos que se “divertia” entre risadas e constrangimentos. Poderia passar sem incômodos por outros olhos, mas olhos e ouvidos trans são atentos, e sabem observar (talvez em função das táticas de sobrevivência em anos de luta).

O que fazer diante de tantas questões sendo uma pessoa crítica que forma cidadãos para a criticidade? Tentar equilibrar (moral, ética, estética, política…) tudo isso e manter uma vida, ainda que mais solitária, saudável e manter a capacidade de relaxar e sorrir apesar de tudo, talvez seja a grande resposta para essa imensa questão”.

Amara Moira
Professora de Literatura / São Paulo

“Segundo ano que comemoro o Dia de Professores e Professoras em sala de aula, dando aulas, realização que não acreditava que poderia viver, mas os desafios são gigantes, assim como é gigante também a mensagem que cada uma de nós dá pra sociedade por ocupar esse lugar.

Dos desafios que uma pessoa trans enfrenta para poder se firmar como professor/a, acho que um dos maiores é justamente o fato da sociedade ainda estar apenas começando a descobrir que ela pode aprender com a gente, que temos sim o que ensinar, que podemos ser excelentes profissionais. Mas pouco a pouco esse espaço vai se abrindo e a gente vai conseguindo mostrar nosso potencial!”.

Bruno Santana
Professor de Educação Física em Salvador, Bahia

“O maior desafio de ser um professor trans ainda é a transfobia. Atualmente estou desempregado, estudando para o tão sonhado concurso. Quero atuar na educação básica, quero poder construir pontes nos lugares mais precários. Tive uma experiência docente bem bacana na educação infantil, sempre estabeleci boas relações com as crianças que tive o prazer de ensinar.

As maiores dificuldades sempre vinham das pessoas adultas, os olhares, os questionamentos, as violências, mas com o passar do tempo, os diálogos e a convivência foram me ajudando a quebrar essas barreiras, sem falar que por mais preconceito que podia vir da parte da família dessas crianças, isso nunca interferiu no desenvolvimento do meu trabalho e da relação de amor e confiança com minhas alunes.

E nesse processo de ensino-aprendizagem consegui ressignificar muita coisa e mostrar para a instituição que a transgeneridade não me fazia menos capaz. Ao contrário, o fato de ser trans me obrigava a ser sempre o melhor, pra não dar lugar a nenhum tipo de reprovação. Estou sempre comprometido com meu fazer docente, dando sentido e significado. Educação é a única forma de superar qualquer preconceito”

Lirous K’yo Fonseca Ávila
Professora de gêneros, sexos e violências / Florianópolis, SC

“O maior desafio que eu enfrento é perceber que há uma construção muito sólida do preconceito contra LGBTs e o desentendimento do que é violência. Inclusive os mais jovens. Conseguimos através das aulas sensibilizar bastante pessoas que se juntam a luta e acabam quebrando o vínculo professora/alunos e nos tornando amigos.

A luta pelo mundo melhor começa aqui, na sala de aula, pois a educação dos pais para com os seus filhos vai depender da educação de base e da formação de seus professores. Pois não adianta ter pais legais enquanto os professores são preconceituosos e omissos às violências. Pois muito ouço relatos de alunos que chegam em casa e ajudam a desconstruir um pouquinho o preconceito dos pais, e isso me enche de orgulho.

Quando estou dando aula sofro preconceito, mas não tanto quando vem dos meus colegas de trabalho, efetivos das escolas e universidades. A nossa luta é por um mundo melhor, incluso que saiba respeitar as diferenças e que traga ferramentas necessárias para combaterem à violência com muita sabedoria e aprendizado”.

Jaqueline Gomes de Jesus
Professora de Psicologia / Rio de Janeiro – RJ

“Quando alguém pergunta ‘Como os alunos reagem com você em sala?’, repondo primeiramente brincando: “Quando eles me veem, dependendo da hora do dia, é bom dia, boa tarde ou boa noite” (risos). Às vezes as pessoas perguntam achando que de cara as pessoas já sabem que eu sou uma mulher trans e que há alguma transfobia. Não. Isso é uma construção que, em geral, quando os alunos vão procurar sobre mim e ficam sabendo mais detalhes sobre a minha vida, inclusive que eu sou uma mulher trans, eles recebem muito bem e a gente segue normalmente a aula.

A questão que eu sempre falo refente ao assunto é que a minha produção intelectual como pesquisadora é muito desvalorizada socialmente pelo fato de ser uma mulher trans. Eu sou menos lida, menos referenciada e menos reconhecida como produtora de conhecimento por ser mulher trans e negra. Portanto, o maior desafio é o reconhecimento da minha capacidade como profissional, sem o apagamento genérico decorrente de estereótipos que as pessoas tem da minha identidade. Também ser reconhecida como uma professora de psicologia que podem dar diversas disciplinas, como eu dou, e que não esteja necessariamente ligada com diversidade ou direitos humanos, como as pessoas imaginam”.

Amine
Professora de Biologia / Manaus

“Sou professora, e o maior desafio de ser uma travesti professora é o preconceito, muitas vezes velado dos próprios colegas de profissão. Te “aceitam” na sua presença, mas pelas costas espalham mentiras e tentam te derrubar. Aliás, o sistema é assim. E com essa onda de ódio que está se espalhando o que era velado está se tornando visível”.

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