Por Neto Lucon
Doutoranda da Unicamp. Profissional do Sexo. Escritora de livros. Ativista. Candidata a vereadora. Quando falamos sobre a identidade travesti, as simbologias nos empurram para o estigma ou para as exceções. Amara Moira, 30 anos, é os dois. Ou então, o ideal, quando existe a autonomia da escolha.
Representa os 90% das travestis que estão inseridas na profissão do sexo (de acordo com a Antra), e também os 10% que conseguiram driblar e terem a oportunidade mostrar outras habilidades, como ser escritora. Tanto que no último ano lançou o livro “E Se eu Fosse Puta”, da editora Hoo.
Amara em repúdio ao assassinato da enfermeira Géia Borghi |
Conheci Amara em outubro de 2014. Ela segurava um cartaz: “Não Mataram Essa Travesti”. E participava de uma manifestação em repúdio ao assassinato da enfermeira e artista transexual Géia Borghi, em Campinas. Em meio às buzinas dos carros, ela inspirava a veia militante.
Pouco tempo depois, participava de um grupo de universitárias que denunciavam pichações transfóbicas no banheiro da Unicamp. Foi matéria do Correio Popular, jornal de Campinas que estampou pela primeira vez a palavra “transfobia” – um grande feito para o jornal que desrespeitou a identidade de gênero de Géia ao morrer.
Amara passou a frequentar o bairro Itatinga, em Campinas, onde encontrava outras travestis e, assim como elas, passou a se prostituir. De lá pra cá, muita coisa aconteceu. Passou feito meteoro pela militância e pela vida de muita gente. Lançou um blog. Escreveu textões. Brigou. Participou de palestras. Sensibilizou pessoas. Foi bloqueada pelo Facebook. Voltou em vídeo. Lançou livro. Se candidatou a vereadora. E continua com novidades.
Abaixo um bate-papo com ela:
– Faz quase três anos que você iniciou a transição e hoje dá palestras, entrevistas, escreveu livro… Você já transicionou preparada ou tudo foi acontecendo muito rápido?
No dia primeiro de maio de 2015 foi a primeira vez que pedi para alguém me chamar de Amara. E mudou tudo. Tanto que… Aliás, posso pedir uma coisa para você? Esses dias eu dei uma entrevista para uma jornalista e tive muitos problemas. E uma das questões foi a forma como ela colocou as palavras que eu disse.
– Da jornalista mudar o sentido ou o que você disse mesmo?
Por exemplo, eu disse que “não queria fazer a operação de redesignação sexual” e ela escreveu que eu “não queria fazer a operação porque os hormônios já deixam o pênis flácido e eu gosto dele assim” (risos). Jamais. Você consegue imaginar eu dizendo uma coisa dessas? E eu nem pude problematizar porque ela faz parte de coletivos feministas e dariam mais problemas. E o que recomendaram foi assumir as palavras e tentar mudar os sentidos que elas trazem, se coloca como pessoa em desconstrução e bola para frente.
– Mas pode ficar tranquila, pois vai sair do jeito que você falou. Mas, voltando, quando você iniciou a transição você tinha noção do que estava por vir?
Não… Uma das coisas de você começar a transição muito tarde (aos 29 anos) é que você acha que jamais vai conseguir ter uma leitura feminina suficiente ou mesmo passabilidade trans. Então quando comecei esse processo estava desacreditada na possibilidade de poder ser a Amara. Eu comecei como se estivesse pedindo desculpas: “Por favor, será que você pode me chamar de Amara? Se você não conseguir, tudo bem”.
– O que você recebia como resposta?
Foi meio ambíguo, porque quando comecei a viver sendo travesti eu estava morando em São Paulo e, quando voltei para Campinas, onde as pessoas me conheceram antes, eu achava que seria um processo muito mais difícil. Mas não. Algumas pessoas espalharam a notícia enquanto eu estava em São Paulo e quando chegava em alguns espaços de Campinas as pessoas já sabiam o meu nome, já estavam me tratando de Amara, mesmo eu estando em uma aparência muito aquém do que consegui construir hoje para mim. Eu vi as pessoas se policiando e colocando no dever de me tratar dessa maneira.
– Então, ao contrário das travestis que acabam tendo resistência e enfrentando a transfobia, você recebeu apoio. É algo que deve ter ajudado muito neste processo…
Foi algo muito muito bonito de testemunhar o coletivo de pessoas de fazer questão de me ajudar nesse processo. Essa coisa de “Não se nasce mulher, torna-se”, e não se torna assim, rápido. Eu demorei um tempo para internalizar esse novo nome, esse novo tratamento, que eu estava pedindo e ao mesmo tempo recebendo. Então foi algo que foi vindo aos pouquinhos. E tem muito a ver que antes de mim outras pessoas pavimentaram esse caminho na universidade, na UNICAMP.
– Pode me dizer alguns nomes?
A Bia Pagliarini é uma pessoa que sozinha fez essa mudança. E junto com a Jaqueline Ramirez, que é uma drag, iniciou esse debate sobre gênero, identidade de gênero, identidades trans, transfeminismo. E criaram no grupo um desejo de contribuir com esses processos. Elas colocaram na cabeça das pessoas que todos temos deveres em contribuir com esses processos. Bem no comecinho, quando eu ainda tinha traços masculinos saltando aos olhos, não era eu que precisava ir lá e negociar a minha identidade. Era alguém da roda que falava: “esse nome não está mais valendo, é Amara e a trate no feminino”. E só para as pessoas se situarem, eu iniciei a transição com 10 anos de Unicamp. Estou indo para 12 anos agora.
– E a partir de qual momento você deixou de pedir ou deixar que as pessoas brigassem por você, e passou a brigar pelo nome social na instituição e em outros espaços? Você chegou a pedir o nome social dentro da Unicamp, por exemplo?
Tem uma frase da Indianara (Siqueira) que é muito marcante na minha vida. Ela me conheceu logo no comecinho e, um ano depois, eu a reencontrei e quis confete: “E aí Indianara, o que você acha de mim, estou mais feminina agora?”. E ela me respondeu: “Eu não vou ficar medindo o quanto você está dentro ou fora de um padrão de feminilidade. Isso não é de mim. O que eu posso dizer é que você está mais confiante e que transmite essa confiança”. Essa resposta foi intrigante, desafiadora e me fez repensar muita coisa.
Então, naquele momento, eu ainda estava pedindo para as pessoas, pois ainda não tinha essa confiança, e insegura do quanto o mundo me permitiria viver essa nova identidade. E, se não permitissem, como eu lidaria com a violência forte para cima de mim? Mas como eu estava no doutorado, eu não tinha mais aula em sala e não tinha mais relação em que o meu nome fosse citado em voz aula, não tinha mais documentos sendo mencionados em público. Então quando eu pedi o nome social foi mais uma questão burocrática que para melhorar a minha vida na universidade.
– A primeira vez que vi o seu nome na mídia tradicional foi em relação ao episódio do banheiro, onde picharam que não queriam travestis no banheiro. Foi a primeira vez que lidou com a transfobia na universidade?
Esse foi um caso bastante violento, porque naquela época a gente tinha umas seis ou sete pessoas trans na Unicamp e quatro eram mulheres trans ou travestis. Só uma delas estava dentro desse padrão de passabilidade cis. Aí a gente encontrar pichações gigantescas do tipo: “Vamos cortar a sua pica”, “não deixem os machos ocuparem os nossos espaços”, “ser mulher não é calçar os nossos sapatos”. E estar em um espaço com 30 mil alunos e feministas dizerem aquilo para você foi muito violento. A gente começa a pensar nesses privilégios da universidade, que a gente acha que é um lugar mais desconstruído, mas se lá já é assim imagina o mercado de trabalho, o resto da sociedade…?
Naquele momento tinha ainda um amigo nosso, homem trans, que havia acabado de passar por uma tentativa de suicídio dentro da Unicamp por conta de toda uma estrutura transfóbica, que não teve as mesmas condições de se impor como eu tive e outras pessoas. Então, com ele no hospital e a gente vendo aquelas pichações, decidimos fazer uma ampla denúncia. Primeiro nas redes sociais, daí fizemos um ato com 150 pessoas vindo com a gente…
– O que aconteceu depois das manifestações?
Algo muito significativo foi que a gente estava em Campinas, uma cidade ainda muito conservadora, e o maior jornal da cidade estampou uma matéria com a palavra “transfobia” na capa. As pessoas mal sabem o que é “homofobia” e de repente a gente consegue falar em “transfobia”. Foi muito sintomático essa mudança de perspectiva. De repente, a sociedade começa a pensar que os nossos dramas e demandas precisam ser conhecidos. E o comprometimento dos movimentos sociais dentro da Unicamp com a pauta trans.
Tanto que meses depois teve um congresso na Unicamp e a frente feminista me colocou como uma das delegadas. Uma das coisas mais importantes foi a gente olhar para o lado, ver que havia cinco pessoas trans ali atuantes, com perfil militante, e que essas cinco pessoas poderiam pensar na ideia de construir um coletivo. E em janeiro de 2015, a gente conseguiu criar o primeiro coletivo trans de uma universidade brasileira, o Transtornar.
– Você se define feminista?
Me defino. E prefiro falar que sou feminista ao invés de transfeminista, porque quando falo que sou transfeminista parece que só sei falar sobre as questões referentes às pessoas trans. Eu quero falar do feminismo no geral, quero falar sobre construções de feminilidade, quero falar sobre assédio, misoginia, porque são coisas que me afetam diretamente. Tem algumas pautas que eu não tenho propriedade para falar, porque não tenho vivência, porque não acontecem no meu corpo, como o aborto. Mas isso não faz com que eu não seja feminista. Há homens que abortam também, homens trans, e o feminismo também é espaço deles.
Então é importante as pessoas trans falarem que são feministas, porque senão parece que pessoas trans só sabem falar de pessoas trans e não da sociedade que nos rodeia. Ao passo que as pessoas cis falam sobre tudo. É um momento muito privilegiado porque a gente está disputando os partidos de esquerda, os processos eleitorais, então a gente consegue levar as pautas trans para outro nível de visibilidade. A gente consegue dar centralidade ás pautas trans no cenário eleitoral, fazer com que elas ganhem importância. Isso é significativo para que tenhamos uma transformação na sociedade em geral.
– Em sua opinião, o que as feministas radicais precisam saber sobre as identidades trans?
Vejo que muitas vezes o feminismo transfóbico foca muito nas coisas que a gente já foi capaz de dizer e enunciar, e menos no processo de aprender a dizer o que somos e como se constitui essa identidade. Uma das coisas que eu acho importante falar é o quanto as pessoas trans são sobreviventes de um processo de enlouquecimento. E com que termos eu coloco isso? Por exemplo: imagine que com cinco anos uma criança criada para ser menino chega para os pais e fala: “eu sou menina”. E aí os pais falam: “você não é menina, você é menino porque você tem pipi”. A princípio tem uma discussão amigável, mas em determinado momento os pais vão perdendo a paciência, vão ficando assustados e esse medo dá espaço à chantagem emocional, à violência física, psicológica, abusos, tentando fazer com que essa criança entre no eixo que eles queriam.
Ninguém nunca nos cria dizendo “nós estamos te criando para ser homem, mas existem muitas pessoas que foram criadas para ser homem e quiseram reivindicar uma vida como mulher e que se sentiram muito mais à vontade como mulher”. Nunca ninguém diz isso. E eu tive que descobrir isso a duras penas, às custas de tudo o que me criaram para ser e que puseram na minha cabeça. Imagine escutar tudo isso desde os cinco anos e ter que conceber que você não pode ser, para o outro, o que já é para si por conta do seu genital. O seu genital é o que impede que você seja uma menina para os outros assim como você já é para si. E aí vão tentar te convencer que a compreensão que você faz de si é equivocada. O que vai acontecer? Essa criança vai aprender a odiar o genital que tem, o corpo que tem, porque aquele corpo faz com que ela não seja lida pelo outro como ela própria se lê. E aí ela vai reprimir tudo isso para poder existir e para não ser aniquilada pela sociedade.
– Mas um dos discursos é o privilégio da socialização masculina. Isso ocorre mesmo?
Existem muitas narrativas das identidades trans. Por exemplo, eu nunca fui uma criança feminina. E nunca fui um homem feminino porque eu tinha medo. Porque eu precisava da segurança de ninguém desconfiar do que eu poderia ser. Era muito assustador imaginar a vida que eu teria pela frente se imaginassem que eu era travesti. Eu precisava que as pessoas me lessem como homem para me proteger.
Mas tem relatos de pessoas trans que desde cedo são lidas como potenciais travestis ou transexuais. E muitas vezes foram tiradas do armário antes mesmo de elas terem consciência do que eram ou como queriam existir. Isso é perverso. Porque quando eu faço a minha transição aos 29 anos, em um doutorado, eu consigo cobrar dos meus pais e da sociedade que me aceitem. Eu consigo negociar em melhores termos a aceitação. Mas a criança com 13 anos que é colocada para fora do armário ela é muito vulnerável. Ela vai ser alvo de uma violência quando está completamente vulnerável. É o que a gente precisa lutar para conseguir, que pessoas que transicionam numa situação muito vulnerável ou dependente consigam ter o respeito, amparo e a proteção para que isso não seja destruidor, um ato suicida na vida dela.
– Em pouco tempo, você já participava de mesas e escreveu livro… Como se deu essa sua entrada na militância? E de qual maneira você viu o seu discurso mudar com ela?
Tem algo de culpa. Eu passei muito tempo me escondendo no armário. Eu passei muito tempo vivendo uma vida que me permitiria conforto. E aí nesse sentido, quando eu começo a transição e vejo que existe um mundo cabuloso pela frente, sinto junto a urgência de que preciso lutar por um mundo habitável para mim e quem é como eu. Então me joguei de cabeça nessa luta. A ponto de estar no doutorado, há três anos e meio, e ele estar empacado. Está uma luta para eu finalizar esse doutorado e trabalhar ali. Não consigo ver mais sentido, pois a minha vida virou militância. Gostaria muito de pagar as minhas contas com militância, mas por enquanto é o meu doutorado que faz isso. E depois que ele finalizar eu vou ter que rever a maneira de militar como eu milito. Eu quero recuperar o tempo perdido e compensar.
O meu discurso vem mudando muito. Se você observar desde o começo, eu lembro que participei de um documentário, o Vozeria, e quando olhei para o que disse ali fiquei apavorada. E me surpreendi também, porque embora eu pudesse falar com outros termos, ali já apontava para a construção do pensamento que tenho hoje. Mas essa exposição toda me testa o tempo inteiro, o tempo inteiro jornalistas perguntam o que eu acho disso, o tempo todo pessoas militantes vem me perguntar qual é a diferença disso para aquilo, e aí me conta a sua história, e isso tudo vai criando esse discurso. E vai parecendo natural…
– Qual é a pergunta mais frequente que você escuta?
Qual é a diferença de travesti e mulher trans.
– Por que ainda hoje é tão importante falar sobre essas diferenças?
Mais importante que pensar naquilo que difere, é pensar naquilo que está atrelado a essas palavras. É pensar que a travesti remete muito mais ao universo da prostituição, da exclusão social, de uma vida precária, ao passo que mulher trans remete a um discurso médico, ao discurso de que nasceu no corpo errado. Não é do que a pessoa se diz ser que estou falando, mas do que essas palavras dizem. Travesti parece que é depravação, enquanto transexual parece que é coisa psíquica, sofrimento. E quando a gente pensa no viés da patologia ou da doença é como se fosse algo que desculpa a pessoa. Eu não estou defendendo essas ideias, mas estou dizendo que são ideias acompanham as palavras.
– Qual é a principal luta que você acha que a população trans enfrenta atualmente?
De um lado, uma bandeira que eu acho importantíssima é a regulamentação da prostituição, mas ela abarca apenas o espectro feminino. E porque eu acho que é uma pauta central? Porque se a gente está falando que 90% das travestis estão lá, a gente não pode acreditar que é urgente desassociar que travesti é igual a prostituta, como se ser prostituta fosse ruim. Se a ideia for essa, você só vai favorecer os 10% de travestis que estão fora. Quem está na prostituição vai continuar sofrendo o estigma, porque tentar desassociar travesti de prostituta é forçar a ideia de que ser prostituta é ruim.
O que me parece urgente é ao mesmo em que a gente vai lutar por brechas no mercado formal de trabalho, para que a gente possa ocupar trabalhos como todo mundo ocupa, a gente precisa também lutar para que a prostituição seja um lugar que nos violente menos, que nos mate menos. Porque se 90% está lá, é quase como se fosse uma condição de existência para nós. Quando a gente é expulsa da escola, de casa, do emprego, onde é possível continuar a nossa vida e se tornar travesti? É na prostituição. É nela que é permitido 90% das vezes que a gente exista. E é uma prostituição precária, que paga o resto do resto, que não é 300 reais a hora. É nessa prostituição onde ocorre a maioria dos assaltos, das violências e das mortes.
– E tem outra bandeira que você acha importante lutar?
A saúde integral para pessoas trans. O acesso a serviços médicos que não sejam focados na prevenção de DST/aids. Como nos veem apenas como prostitutas, e com um tipo de prostituição muito precária, acreditam que a única coisa que interessa em nós são as DSTs. E temos várias outras demandas em relação à saúde que são facilmente esquecidas.
– Antes de se tornar prostituta, você tinha muito preconceito com a prostituição?
Tinha. Nos primeiros textos que eu escrevi, eu ficava muito irritada quando alguém me via na rua e perguntava se eu ia me prostituir. Eu ficava ofendida e diminuída. E hoje a minha perspectiva é diferente.
– O que mudou?
Entendo que preciso lutar contra o estigma da prostituta porque eu vou ser lida como prostituta mesmo que eu não seja prostituta. Então, eu preciso enfrentar esse medo de outra maneira. E pensar que as profissões que estão caracterizadas pelo feminino e que são exercidas pelo feminino, são muito desvalorizadas. Há profissões femininas que sequer recebem remuneração, como dona-de-casa, por exemplo. Enfermagem, professora, fonoaudióloga, pedagoga… e a prostituição, por ser uma das profissões mais marcadamente femininas, é muito desvalorizada também.
– Numa entrevista que você deu, você disse que não se prostituiu por dinheiro. Vi depois algumas ressalvas… O que poderia falar sobre isso?
É complicado quando colocam na entrevista “não me prostituo por dinheiro”. O que isso significa? Significava, por exemplo, que toda vez que eu ia trabalhar eu não conseguia fazer o suficiente para voltar para casa com dinheiro. Então os gastos que eu tinha para ir trabalhar era maior do que o que eu fazia na noite. Primeiro, porque estava machucada e não sabia que estava machucada. Eu estava trabalhando, tive um problema de saúde e eu não conseguia trabalhar muito. Conseguia um ou dois programas por noite, três no limite, e já tinha que voltar para casa porque estava arrebentada. Eu achava que era frescura, eu achava que era algo pela falta de prática e só um ano e meio depois é que eu descobri com uma médica que estava com fissura anal.
Ou seja, como eu vou trabalhar e falar que estou me prostituindo por dinheiro, sendo que eu nem conseguia fazer o dinheiro? Entende… E ao mesmo tempo, eu fiz o dinheiro que era possível, muito pouco, minguado. E com o livro que eu escrevi, se eu ganhar dinheiro com esse livro, eu vou poder falar que ganhei dinheiro com a prostituição. Mas naquele momento eu não conseguia me bancar.
– Algumas meninas dizem que ganham muito dinheiro…
Acho que quando você trabalha em site você consegue atingir um público diferente, disposto a pagar mais. Mas quando você está na rua, não se ganha muito não. Talvez até pela rua despertar aquela coisa de perigo e violência. No site, você tem local próprio e consegue valores mais adequados.
– Por estar naquele espaço, você se sentiu cobrada para entrar na prostituição?
As palavras às vezes trazem ideias equivocadas. Eu não digo que fui cobrada pelas minhas colegas de profissão para começar a me prostituir. Mas eu sentia uma expectativa delas de que eu fosse viver a vida que elas viviam. E não sei o quanto usei essa expectativa como algo que me desculpava para ser prostituta. Ou seja, eu queria ser prostituta, ao mesmo tempo eu via que existia uma expectativa delas também para que eu fosse tentar, então eu usei isso como desculpa para eu poder ser e fazer o que gostaria.
– Sempre falam que existe uma questão de autoestima… De ter o corpo demonizado de dia e desejado a noite, existe isso?
Muito. Em todos os lugares onde eu transitava, o meu corpo não era desejado. Mas quando eu estava no bairro da prostituição, os homens desejavam de uma forma que eu nem acreditava. E aquilo que ao mesmo tempo era invasivo, porque a abordagem era invasiva, aquilo também mexia com a minha autoestima. Aquilo me fazia sentir mais bonita e segura por começar a ser vista como travesti, como uma figura feminina. Então a prostituição foi o espaço que foi me ajudando a me tornar Amara, foi me ajudando a me sentir mais à vontade com o meu corpo, com minha identidade. Mas quem pode assumir isso? Eu não posso assumir. Então tira isso do texto (risos). Brincadeira, pode manter. Eu falo disso no livro também.
– O que você descobriu dentro da profissão do sexo que você não imaginava antes?
São muitas coisas que a prostituição me trouxe. Uma delas é que a sociedade cria pessoas para serem preconceituosas. E aí um monte de pessoas que você não daria nada, talvez pudessem ser pessoas incríveis. A pessoa me pagando minimamente bem, me tratando com respeito, o programa acontece. Se a pessoa chega agressiva, eu já corto. Eu acabei descobrindo um prazer gigantesco com pessoas que estavam fora dos padrões estéticos, por exemplo. Foi lindo aprender a lidar com as minhas limitações por conta da profissão em que eu me vi trabalhando.
De repente, aparecia uma pessoa com deficiência, um homem afeminado, cheio de pelos, gordo… São pessoas e corpos que a sociedade te cria para acreditar que valem menos, pois estão fora do padrão. E mesmo pessoas fora desse padrão também são criadas para reproduzir esses padrões. E ali foi o lugar onde eu aprendi a problematizar na prática as minhas limitações. Foi uma das coisas mais intrigantes e incríveis.
Amara Moira com Indianara Siqueira e Monique Prada na Casa Nem, no Rio de Janeiro |
– Gostaria que você fizesse um paralelo com as professoras que você teve na universidade e as professoras que teve na prostituição?
De alguma forma os professores que eu tive na universidade são pessoas reconhecidas por sua inteligência. E você acha que, por ser inteligentes, eles vão lutar por um mundo igualitário ou menos desigual. E na prática você vê que não. Que são pessoas preconceituosas e que a inteligência está a favor de defender o direito delas de serem preconceituosas. Professor machista é o que mais tem, que desdenha da ideia de uma travesti, de uma mulher, de um gay ser inteligente. Então foi muito frustrante saber que essas pessoas que eu admirava estavam dispostas a fazer daquele espaço um espaço de discriminação. E daí quando você vai para a prostituição você vê que é um lugar radicalmente diverso.
Uma das referências que eu tenho é a Denise Martins, que é chamada de vó no Itatinga. Ela me ensinou muitas coisas e, dentre elas, o quanto é diferente exposição de visibilidade quando vou falar sobre determinadas coisas que são íntimas de determinadas grupos sociais. Eu sempre fico com essa pergunta na cabeça: o quanto estou expondo o grupo e o quanto estou dando visibilidade às pautas e demandas do grupo. Eu nunca tinha convivido com pessoas com HIV e, de repente, tem uma do meu lado. E você percebe o quanto é banal. Você humaniza as pessoas que o mundo segrega. A vida ali me trouxe perto de pessoas que vivem a vida de forma mais verdadeira, mesmo com menos blindagens e privilégios. E isso foi importante para eu saber quais são as coisas para ontem no sentindo de militância e quais são as coisas que podem esperar.
– Além da regulamentação, existem outras bandeiras dentro da prostituição?
A gente sabe que dentro do congresso que a gente tem, pensar no Projeto Gabriela Leite seja aprovado é praticamente inviável. Então o que a organização de prostitutas tem apostado muito é disputar a sociedade. Se a gente disputa a sociedade a gente consegue criar pressão nos governos e nas instâncias políticas para projetos de leis como esse. Com o tempo a gente vai criando pressão e problematizando o estigma que recai sobre nossos ombros. A gente precisa de leis porque estamos sendo violentadas pela sociedade, mas se a gente consegue disputar a sociedade, para que a sociedade nos veja de outra maneira, talvez as leis sejam até desnecessárias.
Disputar a sociedade é fazer com que a sociedade nos humanize e nos compreenda por outro viés. E outra coisa é que o movimento de prostitutas não quer ser tratado como um vetor de doenças. Não é só saúde genital que queremos do governo, a gente quer saúde integral, políticas públicas, direito de melhores condições de trabalho, de poder não ser discriminada pelo trabalho que exerce. Dar apenas camisinha e gel lubrificante é como nos ver como aedes aegypti humano.
– A Indianara é referência para você?
Ela é a pessoa que me ajudou a ser prostituta. Quando eu tentei a primeira vez, eu não consegui um centavo. Voltei pra casa me sentindo a pessoa mais feia, autoestima no chão e muito chocada porque o cliente me ofereceu 20 reais. E eu não consegui acreditar que o meu sexo valia apenas 20 reais. O cara estava em condições deprimentes e isso me deixou chocada. Ela veio e me trouxe muita leveza. Ela me disse: “antes de ser prostituta eu transava com 20 pessoas e não cobrava de ninguém. E eu tinha medo de cobrar por sexo e o que isso significaria. De repente eu percebi que as mesmas 20 pessoas que eu transei eu poderia cobrar e ganhar delas por isso. E às vezes o prazer eu conseguiria também”.
Ela me trouxe algo que nem eu mesma sabia de mim. Antes, eu tinha uma atividade frequente com homens e era sempre em dark room, banheirão, chat uol. Então, qual é a diferença de ser paga? A diferença é que o cliente diz eu quero isso, te pago isso, e você diz até aonde vai. Antes eu faria de graça aquela mesma coisa, agora eu estava recebendo alguma coisa. Ela me ajudou a me acreditar que a prostituição poderia ser uma coisa leve, eu só precisava mudar a maneira como estava.
– O que falar para a pessoa que vê a prostituição com preconceito?
Primeiro, é a gente falar de como o sexo é uma experiência humana incontornável. Todo mundo deseja o sexo em alguma medida. E a gente percebe que a mulher que exerce a sua sexualidade ela é punida. A gente vive um momento de muito machismo. Esse machismo pune as pessoas que não sejam homens cis héteros de exercer a sua sexualidade. Esses homens querem exercer, exercem, mas as mulheres seguem restritas ao ambiente doméstico. Se o sexo é uma experiência incontornável, porque a gente não pode pensá-lo em termos de um saber, algo pelo qual se pode cobrar. E se eu sei fazer sexo como ninguém sabe fazer, porque essa atividade não pode ser cobrada? Por que essa atividade só pode ser exercida com parceiros sexuais onde haja amor e afeto. Quando eu saio com alguém no dark room ou no banheirão, não há amor envolvido. E por qual motivo ali é permitido e na prostituição não? A pessoa quer esse serviço e eu posso cobrar por esse serviço porque é a minha especialidade. Eu tenho um saber sobre sexo e quero que esse saber seja valorizado a partir desse saber. É uma possibilidade, entender o sexo como um saber e não como algo no nível da depravação ou de algo que só deve ser feito com amor.
– Mas existem tantas pessoas que dizem que gostariam de sair da prostituição…
Quando a gente vê uma prostituta dizer que não gostaria de ser, as pessoas devem se perguntar o porquê. Se não houvesse tanta violência, estigma, elas diriam a mesma coisa? A luta não é para manter a prostituição do jeito que está, é por valorizar essa atividade. Ao ponto de a gente ter autonomia para a gente sair dessa profissão se a gente quiser. O prazer da profissional do sexo deve ser antes de mais nada receber e ser respeitada. Esse deve ser o prazer. E não misturar prazer com trabalho, porque isso pode atrapalhar as coisas. É complicado, realmente. Eu tenho um discurso militante e um discurso que acredita que a profissão possa ser exercida de uma maneira digna. Mas também tem aquela prostituta que não está na militância, que está às duras penas pagando as próprias contas.
E mesmo aquelas que estão em situações precárias, elas podem até não gostar dessas condições, mas podem gostar da profissão. Percebe a diferença? Elas podem até querer outra profissão por conta da precariedade, mas não porque ela desprezaria essa. E ao mesmo tempo tem o estigma de você ter que dizer que não gosta. Quem vai querer namorar comigo se eu me assumo como prostituta? Como vão me tratar se eu me assumo como prostituta? Como a família e amigos vão lidar com isso? Parece que não existe lugar para você neste mundo.
– Você é uma exceção dentro desse contexto, fazendo doutorado e escrevendo livro, né?
Quem consegue ter alguma visibilidade já é uma exceção. Então mesmo a travesti que veio de uma situação precária, de uma vida pobre, negra, vinda de outras regiões do país, trabalhando na rua, vivendo com hiv, se elas conseguem visibilidade, elas também se tornaram exceção. E é importante a gente pensar de que forma a gente vai fazer dessa visibilidade pra conseguir transformação real. Se a gente quiser dizer “tem aqui uma travesti que escolheu ser prostituta” e, com isso, significar que todas escolheram, isso é um problema. O equívoco é a gente universalizar a partir da exceção.
– O que mais te acusam por ser exceção?
Muitas vezes me acusam de estar romantizando a prostituição, mas quando você vai ler os meus textos, quando você aponta as diferenças dos meus textos com outras, é porque eu enfatizo as violências que ocorrem. Se eu enfatizo as violências, não sei como estou romantizando a prostituição. Eu estou ali mostrando o quanto o machismo é perverso com a prostituta, porque exercer atividade sexual da mulher já é condenável. Agora exercer atividade sexual cobrando por isso é ainda mais condenável.
– O que você pode falar sobre o seu livro “E Se eu Fosse Puta?”
O livro tem um ano e meio de textos do blog. Para o livro, eu trouxe algumas histórias que não tinha escrito e reescrevi radicalmente outras. E não é porque inventei coisas, é porque me permiti detalhar mais e me permiti pensar na perspectiva de quem está agora reescrevendo os textos, e não de quem está vivendo no calor do momento. Então, eu reescrevi tudo para dar a perspectiva da Amara dois anos depois. O livro é um pouco isso. É mais que um livro sobre prostituição, é um livro sobre a construção da minha identidade, pois foi ali que eu descobri quem eu era.
– O que você pretende a partir de agora?
Uma das coisas mais nítidas que me vem quando falo sobre prostituição é que ela me faz escrever. Ela me permite e me força a escrever. E era algo que eu não conseguia fazer durante muito tempo. De alguma forma essa ideia não foi contradita por mim. Mas ao mesmo tempo estou usando a prostituição para fazer livros, literatura. E para invadir as livrarias, bibliotecas, bancas de jornais, quem sabe um dia caia no vestibular.
Quero mostrar que estou ali na prostituição, mas que não é por causa disso e por causa de ser travesti que não sei escrever, que meus livros não merecem ser lidos ou ganhar espaço nos noticiários, nas universidades. É um pouco disputar esse espaço e tentar mostrar para a sociedade que nós temos um potencial muito inexplorado. Quem sabe depois desse meu livro surjam outros livros de prostitutas travestis determinadas a mostrar que tem muita coisa a dizer e contar.